01/05/2017

A Liberdade no Século XXI



A Liberdade no Século XXI


Introdução


Para quem acompanha meus textos neste blog, sabe que me considero um liberal de sentido clássico. Ou seja, um liberal no mesmo sentido em que Adam Smith, Thomas Malthus, David Hume, John Locke, Lord Acton, Francis Bacon, Montesquieu, John Stuart Mill e outros tantos também eram. Defendo três princípios básicos, com ênfase em dois deles, quais sejam: vida, liberdade e propriedade. Sendo a liberdade e a propriedade os dois valores mais fundamentais para a existência de uma saudável vida humana. Assim como estes clássicos, possuo o mesmo arco de reflexões e preocupações de outrora. Mas adaptando-me ao meu tempo.

E como liberal, a questão da liberdade humana não só me fascina como me inquieta. Questões como o que é a liberdade, como ser livre e onde está a liberdade humana no mundo contemporâneo fazem parte de minhas reflexões. E o que observo é um mundo informacionalmente globalizado (graças a cada vez mais barata tecnologia da informação), mas efetivamente dividido. Evidente que esta batalha se apresenta de maneira distinta em cada região do mundo. Mas a guerra em si possui um elemento chave próprio: trata-se de um conflito entre a globalização e o localismo enquanto identificações.

Atualmente, segundo minha interpretação, o mercado mundial possui três estruturas:

A). Informação:

É através dela que o indivíduo e instituições tomam conhecimento de um novo produto, ou de uma novidade que aparece no mercado global. Isso significa que somente pela informação é possível tomar conhecimento a cerca da novidade. Ou ainda, da oportunidade.

B). Capital:

Uma vez de posse da informação, o indivíduo ou instituição tem a opção de ter acesso a oportunidade vislumbrada. Por se tratar de uma novidade, a maioria tende a desejar o novo produto ou novo serviço. É o que os economistas chamam de “risco-oportunidade”. Embora seja bastante conhecido que este julgamento do consumidor não seja inteiramente racional, mas ilustrativo. Para isso existe marketing, propaganda e comunicação.

C). Escassez:

A informação é abundante, pois não precisa de mais nada que não sejam os meios pelo qual algo é comunicado. O capital é mais restrito, pois depende de financiamento, questões como empregabilidade, condições de investimento e assim por diante. Entre o máximo querer e o máximo poder, existe um vazio, um gap que chamo de escassez. Não apenas de capital, mas de princípios, valores, referências simbólicas e capacidades de se construir uma metalinguagem local que dialoga com a global.

Isso significa que o cidadão do século XXI é constantemente apresentado a um enorme volume de informação. Afinal, esta é a estrutura mais barata do mercado. Com base na informação, o cidadão toma a decisão de possuir algo. Ele aqui se torna consumidor. E como consumidor, ele precisará dos meios pelo qual terá acesso aquele desejo. Portanto, ele precisará de capital. Não me refiro aqui apenas a capital enquanto dinheiro, mas também enquanto ferramenta. Neste sentido, podemos nos referir a capital político, capital artístico, capital social e assim por diante.

No entanto, apenas acesso a informação e decisão de posse não são suficientes para compreender a realidade humana moderna. Entre a informação recebida e a decisão de posse, há um conjunto de princípios, valores e referências de longo prazo não considerados. Basicamente, estamos num mundo onde o indivíduo é preparado inconscientemente para ser consumidor, deixando de lado toda ordem de preceitos metafísicos e simbólicos que o constroem enquanto ser humano. A isso eu chamo de escassez. E diante desta escassez, o indivíduo tem poucas opções.

Na escassez de cultura implica que o indivíduo busque a cultura que lhe é sedutora no turbilhão de informações. Na escassez de referencial metafísico, a mesma coisa acontece. O que é a singularidade tecnológica e o mito de que a tecnologia resolverá todos os problemas da humanidade, se não uma mitologia dos tempos modernos? Na escassez de opções, o indivíduo é influenciado a acreditar neste mito. A tecnologia é o que lhe dá acesso a informação. Faz parte de sua realidade do dia-a-dia. Logo, é mais fácil imaginar o futuro como algo tecnologicamente abundante do que imaginar qualquer outro futuro. A escassez de opções nos leva a mitologias absolutas. E a tecnologia, hoje, não é mais uma ferramenta da modernidade. É uma ideologia por si mesma.

Dando um exemplo prático, nem todo brasileiro pode ter o estilo de vida de um americano de classe média. No entanto, ele se esforça além de suas possibilidades capitais de alcançar este padrão de vida. Por qual motivo? Pela simples razão de que toda ou a maior parte da informação que ele recebe é oriunda do padrão de vida norte-americano. Logo, suas escolhas são enviesadas no intento de se ter o mesmo padrão de vida.

Se ele possuísse valores ou princípios atemporais oriundas de sua localidade, de sua região de nascimento, ele receberia a informação de fora e também geraria uma nova informação. Com isso, o mercado se adaptaria aos valores e princípios do brasileiro. A própria tecnologia seria obrigada a se adaptar aos anseios do povo brasileiro. O que acontece hoje é justamente o contrário. Graças a escassez de valores e princípios atemporais, o mercado molda a vida do brasileiro a sua vontade. E podemos expandir este exemplo para as regiões subdesenvolvidas do mundo.

Portanto, temos aqui um problema muito mais profundo do que esquerda ou direita. Muito mais delicado do que o terrorismo islâmico. Vale lembrar que os terroristas também utilizam a tecnologia, a informação e o capital para seus intentos. E seu fundamentalismo radical é uma resposta violenta ao choque de civilizações ocasionado pela escassez de princípios e valores atemporais que dialogam com o cosmopolitismo da globalização.

A liberdade humana está ameaçada como nunca antes na história. Estamos aceitando hegemonias sem nos apercebermos disso. A ideia de que a tecnologia nos levará para um futuro promissor é uma mitologia hegemônica, um ideal absoluto. Não é questionado. Não é sequer considerado uma ameaça. E é por isso que o homem está perdendo sua capacidade ao contraditório. E junto dela, a sua liberdade.

A grande pergunta que me leva a escrever este artigo é esta. Como podemos defender a liberdade humana sem negar a informação, sem negar o capital e sem negar a globalização? Como podemos garantir um contraditório num mundo que tende a equalizar os indivíduos não mais como cidadãos, mas como “consumidores”? A mim parece temerário imaginar um mundo onde as diferenças culturais se perdem. Gosto da Índia por ser a Índia. Gosto dos EUA por ser os EUA. Gosto do Japão por ser o Japão. Gosto do Brasil por ser o Brasil. E gosto da Europa por ser a Europa. Se tudo for globalizado tendo em vista um grande mercado tecnológico fundamentado pela informação de massa, onde ficará a interpretação? Para onde irá o diferente?

Caminhamos para um mundo de conflito pois não temos as respostas para estas perguntas. Não temos um acordo entre as identidades locais e a globalização. O choque de civilizações dá espaço para os fundamentalismos. E com isso, criamos uma sociedade global autocrática, que pensa como consumidor e não como cidadão. A estes problemas tentarei responder nos próximos tópicos.



Parte I
A benevolência e a Autocracia


Adam Smith, em “Teoria dos Sentimentos Morais”, no Capítulo I (Sobre a Simpatia), escreveu:

Quão egoísta seja o homem, há nele evidentemente alguns princípios que o levam a se interessar pela fortuna dos outros e torna necessária a sua felicidade, embora dela não obtenha nada a não ser o prazer de constata-la. Dessa forma é a piedade ou a compaixão, a emoção que sentimos diante da miséria dos outros, quando a vemos ou a concebemos de uma maneira muito viva. Que muitas vezes ficamos tristes a partir da tristeza dos outros, é óbvio demais para exigir quaisquer exemplos para prová-lo. […] Nós não temos uma experiência imediata do que os outros homens sentem, não podemos formar a ideia da maneira em que eles são afetados, mas por conceber o que nós mesmos deveríamos sentir na situação semelhante. Eles nunca fizeram, e nunca podem, nos levar além de nossa própria pessoa, e é somente pela imaginação que podemos formar qualquer concepção de quais são suas sensações.

Em outras palavras, Smith explica neste trecho que o ser humano naturalmente tende a sentir compaixão pelo outro. Não porque ele é capaz de sentir a dor do outro, mas porque imagina em si mesmo o que o outro sente. Portanto, daqui podemos observar a tendência para a benevolência. Benevolência (termo usado muito por Smith) é a capacidade de se solidarizar com outro e desejar seu bem, uma vez que consideramos que o bem geral inclui o nosso próprio bem. Somos seres sociais. Imaginar o mundo a partir de um prisma unicamente egoísta, sem a afetação do que as relações sociais nos geram, é tudo menos benevolente e liberal. Imaginar o mundo como um lugar onde não há afetação social é o mesmo que tiranizar a existência humana. A esta tiranização chamamos de autocracia, pois é o poder absoluto de um Ego que menospreza outros.

Para ratificar este aspecto social do indivíduo, Ludwig von Mises escreveu em Ação Humana, página 69, o seguinte:

"Este individualismo metodológico tem sido veementemente atacado por várias escolas metafísicas e depreciado como uma falácia nominalista. A noção de um indivíduo, dizemos críticos, é uma abstração vazia. O homem verdadeiro é, necessariamente, sempre um membro de um conjunto social. É até mesmo impossível imaginar a existência de um homem separado do resto da humanidade, dissociado da sociedade. O homem como homem é o produto de uma evolução social. Sua característica mais importante, a razão, só poderia surgir numa estrutura de interdependência social. Não há pensamento que não dependa dos conceitos e noções da linguagem. E a linguagem é manifestamente um fenômeno social. O homem é sempre membro de uma coletividade. Como o conjunto é tanto lógica como temporalmente anterior às suas partes ou membros, o estudo do indivíduo é posterior ao estudo da sociedade. O único método adequado para o tratamento científico dos problemas humanos é o método utilizado pelo universalismo ou pelo coletivismo."

Portanto, por mais que o liberal reconheça valor no indivíduo, ele jamais negou (e não pode negar), que o indivíduo é um ente coletivo, construído na ordem social e nas suas relações com outros indivíduos. A esta relação, construímos memória (experiências passadas), desejos (expectativa de experiências) e interpretações da realidade (experiências de momento). O indivíduo não é soberano como uma entidade “por si mesma”. Nem pelo aspecto filosófico e nem mesmo biológico isso seria possível. O homem é um ser social (ou político, segundo Aristóteles). E todo liberal sempre ratificou isso.  

Também segundo Smith, uma sociedade baseada na simpatia de uns com os outros, ou seja, na benevolência pública, é uma sociedade onde a liberdade pode dar frutos. Pois se todos os indivíduos de uma localidade se preocupam uns com os outros, então certamente a escassez de condições de uma vida digna será rapidamente superada. Daí que Adam Smith considera que o Estado tem a função de ofertar serviços básicos a sociedade, tais como: educação, saúde, saneamento básico, infraestrutura, justiça e defesa. Pois tendo acesso ao básico, todos os indivíduos serão capazes de viver sua liberdade.

Porém, uma sociedade autocrática, portanto uma sociedade onde o indivíduo preocupa-se apenas com seu bem-estar ignorando os demais a sua volta, é uma sociedade com tendência ao autoritarismo. A pobreza e miséria, neste contexto, não apenas sobrevive como cresce. E onde há miséria há também conflito. O homem jogado ao seu aspecto mais natural de todos (a sobrevivência) perde completamente a capacidade de participar da sociedade e se torna um ente absolutamente imediatista. Sua preocupação não será mais com aspectos morais ou éticos, mas sim com o que ele irá se alimentar. Diante disso, a cultura declina, os princípios e valores perdem força e o caos começa a imperar.

A obra “Teoria dos Sentimentos Morais”, de Adam Smith, é talvez uma das principais obras do liberalismo clássico. Tanto quanto A Riqueza das Nações, do mesmo autor. Pois ambos se complementam de modo a oferecer ao leitor uma visão bastante completa do ideal empírico desejado por um liberal clássico.

Anos mais tarde, John Stuart Mill repetiria as palavras de Adam Smith. Em sua obra “Utilitarismo”, Mill afirma: “A proposição de que toda a felicidade é o fim e meta da moralidade, não significa que não tenha de ser estabelecida uma rota para esse objetivo, ou que as pessoas que o procuram não devam ser aconselhadas a tomar uma direção em vez de outra. […] Todas as criaturas racionais vão para o mar da vida com decisões já tomadas sobre as questões mais comuns do correto e do incorreto, assim como as bem mais difíceis questões relativas à prudência e à imprudência.”.

A cooperação entre miseráveis e pobres existe ao passo em que a necessidade impõe esta cooperação. Mas no momento em que for necessário escolher se você se alimenta ou se outro se alimenta, numa sociedade miserável, a tendência é a escolha egoísta. Ou seja, é seguro afirmar que onde há pobreza e miséria, há também maior competição entre indivíduos. Já uma sociedade próspera, benevolente, onde todos os indivíduos possuem garantido sua alimentação diária, por exemplo, é também uma sociedade mais cooperativa do que competitiva. As diferenças continuam existindo, mas dentro de um padrão tolerável de conflito. Já na miséria, o conflito é absoluto, estando na seara da vida ou da morte.

Para que exista cooperação é necessário antes de tudo um ambiente onde indivíduos estejam mais inclinados a cooperação do que a competição. Na era primitiva, homens das cavernas caçavam em conjunto para melhor aproveitar a oportunidade. Havia um contrato indireto sobre a alimentação da tribo. Mas assim que aparecia outra tribo faminta desejando o alimento conquistado, começava a competição. A maior parte (se não todos) os conflitos na Idade da Pedra são por questões de escassez. A cooperação entre diferentes sociedades se tornou usual a partir do sedentarismo, quando também as relações sociais começaram a se complexar.

Mas é evidente que o sedentarismo não resolveu o problema da escassez. E outros tipos de conflitos continuam a existir. O ponto aqui, no entanto, são as tendências. Quando há escassez, ou seja, miséria, há tendência para o conflito. Quando há prosperidade, há tendência para a cooperação.

Portanto, é desejável que haja prosperidade de cultura, prosperidade de pensamentos, prosperidade de mitologias (utopias) e prosperidade de identidades nacionais. Se o mundo tende a globalização, é necessário que esta globalização respeite as diferenças locais e identitárias dos povos, razão pela qual o padrão de consumo não pode ser determinado por uma única cultura, localidade ou sociedade, mas por todas as culturas existentes na humanidade ao mesmo tempo. Para isso é necessário sociedades com elevado grau de autonomia diante do teatro internacional, onde o território local é tratado de maneira mais respeitosa do que apenas mercadológica.

A benevolência de Smith, portanto, só pode existir a partir de um nacionalismo liberal que proteja os princípios e valores conquistados pela história de uma sociedade e inclua na experiência informacional global informações destas localidades, tornando assim a cooperação mais desejável. Em um mundo onde há escassez e hegemonias, a tendência é unicamente para o conflito e miséria. E isso me leva ao segundo ponto desta explanação.



Parte II
O Nacionalismo Liberal e os Estados-Nação


O leitor desavisado talvez estranhe o termo “nacionalismo liberal”. Afinal, o nacionalismo não é algo contrário ao liberalismo? A resposta a esta questão é simples. Mas antes, precisamos entender o que é nacionalismo.

Segundo o dicionário, nacionalismo se refere a “sentimento de pertencer a um grupo por vínculos raciais, linguísticos e históricos que reivindica o direito de formar uma nação autônoma.”. Portanto, podemos considerar que nacionalismo significa identidade. E identidade é um ato voluntário de assimilação e aproximação entre pessoas que convivem num mesmo território. Neste sentido, é perfeitamente compatível com o liberalismo clássico.

O que liberais costumam combater é o nacionalismo antiliberal, aquele xenófobo que coloca os símbolos nacionais acima de outros povos e indivíduos. Isso de fato combatemos. Mas a assimilação identitária voluntária e a cooperação social é algo intrínseco ao próprio liberalismo.

Antes de seguir a leitura, recomendo fortemente que o leitor assista a palestra a seguir (em inglês):




Em resumo, podemos afirmar que existem duas escolas de pensamento a cerca do nacionalismo. Uma que trata a nação como ideologia e a outra que trata como identidade cultural. Através da palestra acima e do que já indicamos anteriormente, o leitor provavelmente já percebe que o liberalismo defende a tese do nacionalismo cultural. Quando o nacionalismo é posto como uma ideologia, ele perde seu valor voluntário e se torna uma causa, uma bandeira normativa. E portanto, impositiva.  

Compreendido o que o liberal diz ao defender um nacionalismo, precisamos compreender agora no que consiste este nacionalismo. Do ponto de vista acadêmico, uma “nação” é composto por três elementos: povo, história (cultura) e território. Ou seja, dentro de um território há um povo que possui relações históricas e sociais identitárias uns com os outros e reproduz estas relações sociais num conceito mais alargado denominado nação. Não existe nação sem uma historicidade semelhante e sem um território que seja palco desta historicidade.

O que é recente na história humana é o conceito de “estado-nação”. Ou seja, a ideia de que uma cultura é governada por um mesmo Estado. Para ficar mais claro, observe a seguinte imagem:



Figura 1 Na caixa amarela, a nação. Na caixa verde, o conjunto "estado-nação".


Nações, portanto, são conceitos antigos. Desde antes do iluminismo haviam nações, compreendidos como povos que vivem num mesmo território e possuem assimilações identitárias próximas. O estado-nação é um fenômeno cuja criação remonta as Monarquias absolutas.

Na Idade Média, os territórios europeus eram divididos entre propriedades controlados por um nobre. Estes nobres acumulavam poder através da força armada e dos relacionamentos entre famílias nobres. A Igreja detinha o papel de unificador cultural. Mas cada região possuía suas características. Não existia, na era medieval, uma ideia de Estado da Inglaterra, por exemplo. Existia o Reino da Inglaterra (nação), que era o conjunto de propriedades assimiladas culturalmente e, portanto, inseridos num domínio maior. O monarca medieval não tinha poder absoluto. Ele precisava constantemente ter apoio de importantes nobres para, assim, manter o poder.

A partir do final da Idade Média e início da Idade Moderna (1450-1770 d.C.), começam a surgir as monarquias absolutas. Por diversas razões diferentes que não cabe explorarmos neste artigo, os Reis europeus começaram a acumular poder de tal modo que o trono se tornou mais poderoso do que as posses dos nobres. E a partir do Rei absoluto toda a cultura de uma região (nação) ganhou um Estado unitário que o governaria (neste caso, unificado na pessoa do monarca). Nesta época imperava o mercantilismo e a expansão das nações europeias para o novo mundo. Temos aqui o embrião dos estados-nação. Mas os estados-nação como conhecemos só surgiria de fato durante a Revolução Industrial, quando os preceitos filosóficos construídos ao longo do iluminismo ganhariam motivação económica, tornando-se um conjunto. Somente no contexto nacionalista é possível assimilar o conceito de cidadania moderna.

Como afirma Lord Acton em “The History of Freedom”, página 274:

No velho sistema europeu, os direitos das nacionalidades não eram nem reconhecidos pelos governos nem afirmados pelo povo. O interesse das famílias reinantes, e não das nações, regulava as fronteiras. E a administração foi conduzida geralmente sem nenhuma referência aos desejos populares. Onde todas as liberdades foram suprimidas, as reivindicações da independência nacional foram necessariamente ignoradas, e uma princesa, nas palavras de Fénelon, carregou uma monarquia em sua parcela do casamento.”

Segundo o historiador Karl Polanyi em sua obra “A Grande Transformação”, de 1944, os estados-nação e a economia de mercado são uma única coisa: a sociedade de mercado. Nasceram juntos e existem juntos. Isso significa que o fim da monarquia absoluta e o nascimento do constitucionalismo, assim como a divisão dos poderes em três clássicas estruturas (executivo, legislativo e judiciário) fazem parte de um arranjo burguês visando a expansão da indústria e dos mercados em ascensão no final do século XVIII e começo do XIX.

Estados-nação são, portanto, um povo dentro de um território governados por uma mesma estrutura de instituições chamado Estado. As nações europeias foram as primeiras a explorar esta nova realidade. Durante todo o século XIX, os estados-nação se desenvolveriam como entidades aglutinadoras da história de um território e da construção de uma cognição social nova: a nacionalidade. A ideia de pertencer a um país tornou-se o padrão e dentro deste espectro, toda ordem de mudanças políticas começaram a emergir.

Como dito na parte I (sobre a benevolência), todo indivíduo divide o tempo em três fases. A memória (experiências passadas), o desejo (expetativa de experiências futuras) e a interpretação (a experiência de momento). Tudo na vida humana tem um começo, um meio e um fim. Tudo tem passado, presente e futuro. E na mentalidade nacionalista, também. Povos que compartilham de um mesmo território, uma mesma bandeira e símbolos nacionais, também compartilham memórias, desejos e interpretações da realidade momentânea. Por exemplo, os EUA nasceu como estado-nação fundamentado nos valores que os pais-fundadores do novo país aglutinaram durante a Guerra de Independência. Mas tais valores não nasceram da noite para o dia. Eles foram fermentados durante o processo de colonização inglesa até culminar numa expectativa de futuro nacionalista.

A mesma coisa se deu com Alemanha e Itália. Ambos eram, até a metade do século XIX, territórios com vários estados autônomos. Mas em ambas as regiões, haviam autores, artistas e políticos lutando por uma unificação cultural que desse origem a uma expectativa. Ou seja, durante muito tempo os povos italianos e germânicos fermentaram uma ideia de nação até, finalmente, se unificarem e formarem um estado-nação.

O processo é idêntico em toda parte do mundo. No Japão, o moderno estado-nação foi desenhado através da Restauração Meiji, quando o imperador Meiji fez uma série de reformas com o intuito de unificar o povo japonês dentro de um moderno sistema de instituições que inserisse o Japão no conjunto de estados-nação numa sociedade de mercado. Como disse Polanyi, o conceito de estado-nação está diretamente ligado a economia de mercado (industrial). Um e outro são dependentes mutuamente.

Na América Latina o processo de independência dos países deram origem imediatamente a um estado-nação. Se quisermos compreender onde está o pacto histórico destas sociedades, precisaremos repensar suas fundações.

O capitalismo moderno, que permite a própria revolução tecnológica que a sociedade contemporânea vislumbra, é diretamente dependente deste arranjo. Não é possível acabar com os estados-nação, pois isso enfraqueceria o arranjo industrial global que permite a investigação e a inovação. Também não podemos acabar com a economia de mercado pois ela sustenta os estados-nação. Logo, se desejamos um futuro promissor, precisamos aceitar o fato de que os estados-nação (surgidos há apenas 200 anos atrás), ainda estão se desenvolvendo. A atual crise não significa o fim dos estados-nação, mas a sua adaptação.

Adam Smith estava à frente de seu tempo quando defendeu um modelo de nacionalismo liberal. Somente a identidade cultural voluntária e legítima pode formar um estado-nação autónomo, independente e com expectativa de futuro. Quando um conjunto social possui uma história compartilhada, possui também uma memória. De acordo com esta memória, a sociedade vislumbra as possibilidades de futuro. E é através desta expectativa que um projeto de nação é possível. Pois há unidade social suficiente para direcionar os costumes de governo e de Estado, ao mesmo tempo em que fornece uma segurança de continuidade para todas as gerações vindouras.

Neste sentido, há um valor intrínseco no respeito as tradições de um povo. Assim como aos costumes. E é isso que me leva ao terceiro tópico deste artigo.



Parte III
O homem finito diante do tempo infinito


Estado-nação e economia de mercado não podem andar em separado. O que temos hoje é uma tentativa da economia de mercado ser mais preponderante do que os estados-nação. Neste sentido, temos um sequestro do Estado por parte de grandes empresários, investidores e burgueses que usam o aparelho estatal para ganhar vantagem diante de seus interesses. Este fenômeno é global. As ideologias que defendem o fim da economia de mercado não compreendem a real natureza do mesmo. Assim como as ideologias que defendem o fim do Estado não fazem ideia do que estão falando. São utópicos que desejam um mundo bonito da noite para o dia, ignorando todas as reais possibilidades escondidas dentro do arranjo que atualmente já existe.

O mundo globalizado é uma ameaça aos atuais estados-nação mas favorece absolutamente os interesses de grandes industriais e investidores. Na sociedade de mercado, o cidadão também é consumidor. Mas ele é antes de tudo um cidadão, pois o imperativo histórico-cultural é anterior ao consumo individual. Todo indivíduo primeiro surge num contexto familiar e depois, no percurso de seu desenvolvimento, se torna um indivíduo com sua própria interpretação de mundo. O que estamos vendo no começo deste século XXI é a tentativa de se ignorar o conceito de cidadão e tornar toda a humanidade um conjunto de “consumidores”.

O problema é que quando todos se tornam consumidores, não estamos vislumbrando aqui nem passado e nem futuro. Mas apenas, o imediatismo do agora. Na introdução eu me referi as três estruturas que fazem parte do mercado moderno: informação, capital e escassez. Quando o indivíduo é colocado como consumidor e nada mais, ele é diretamente inserido num turbilhão de informações que determinam o tipo de vida que ele viverá. O risco-oportunidade o tempo inteiro aparece diante de seus olhos, numa velocidade extremamente elevada, enquanto seu capital não consegue acompanhar o volume de informações. Se ele não tiver uma base cultural forte, fatalmente será controlado pela informação que recebe sem sequer perceber isso. São os escravos que acreditam serem livres e que, por isso, defendem a sua escravidão a todo custo.

O único meio de contornar este problema é voltando as atenções para o conceito de estado-nação e sua reestruturação. Para isso, os povos precisam urgentemente fazer um esforço memorável de recapitulação dos valores e princípios que fundaram seu estado-nação e, através disso, defender uma expectativa de futuro perdida no tempo. Quando todo estado-nação é fundado, seus fundadores possuem expectativas na qual se baseiam na formulação do novo país. Estas expectativas são o projeto de nação. Renovando-os atentamente, os povos do mundo podem oferecer uma solução elegante, pacífica e moderna para o problema da globalização e da perda de identidade local.

Projetos de nação renovados significa também povos com um horizonte metafísico a ser perseguido. Aqui, vale fazer um parêntese. Embora exista uma pretensa guerra filosófica entre ciência e religião, não vejo razão pela qual ambos não possam dialogar. Seja qual for a tradição religiosa de uma sociedade, ela pode muito bem fornecer subsídios para uma contínua exploração da ciência visando o bem comum da humanidade. A ciência é um conjunto de métodos que visa explicar como as coisas funcionam. Filosoficamente, é esta a sua função. O leitor pode procurar qualquer área científica e perguntar o que as suas teorias respondem. E tudo o que verá é que cada área da ciência, cada teoria é apenas uma proposta de solução para o problema de “como as coisas funcionam”.

Mas a ciência não responde a outra pergunta necessária para a construção da realidade humana. O “por quê” as coisas são como são. A ciência diz como é, mas é incapaz de aprofundar os “comos” e dar um significado a cada coisa. O significado das coisas são originadas na indagação “por quê”. Por qual motivo as coisas são como são? Ninguém possui uma resposta absoluta, mas há diversas respostas que valem a pena ser respeitadas e pensadas. E isso inclui as sociedades nacionais. Dentro de uma nação, há um conjunto de religiões, algumas mais predominantes que outras, que insuflam princípios e valores importantes para esta sociedade. Estes princípios é o que dá significado para a existência. São os famosos “valores” que nossos ancestrais tanto falavam. E de fato, um indivíduo sem valores metafísicos ou atemporais, é um indivíduo escravo do seu tempo.

A vida humana é finita. Todos que hoje estão vivos um dia se unirão ao conjunto de gentes que descansa entre os mortos. As futuras gerações, que sequer nasceram, a mesma coisa. Nesta vida viemos de passagem. Mas o que fazemos permanece diante de nossos filhos, netos e bisnetos. O que fazemos em vida, fica para os vivos. E são os vivos que, no conjunto “memória, desejos e interpretações”, moldam a realidade e que vivemos.

Ao reviver as expectativas que deram origem aos estados-nação, revivemos também esta metafísica atemporal, que nos dá a ideia de continuidade. E dentro de uma ideia de continuidade, o progresso é possível. Portanto, a própria liberdade individual depende de se fortalecer os estados-nação no século XXI. Sem eles, estaremos completamente perdidos diante da imperiosa economia de mercado, governada pelo interesse plutocrático onde as vozes do homem simples são ignoradas. O iluminismo acabou com a monarquia absoluta para criar um ambiente onde o cidadão possa construir sua liberdade. E hoje estamos na fronteira onde este sonho iluminista criou um efeito colateral, um novo absolutismo e uma nova ameaça ao indivíduo. O absolutismo das utopias mercadológicas e os senhores absolutos que controlam a informação e o capital.

Precisamos fazer um acordo com o tempo. Se os estados-nação representam a atemporalidade, a continuidade e o mercado representa a mudança contínua e o imediatismo, há de se fortalecer o elo mais fraco. Fortalecer os estados-nação é muito mais do que fortalecer os Estados. Precisamos fortalecer as culturas locais, as tradições locais, relembrar aquilo que nos identifica como brasileiros, portugueses, americanos, japoneses, russos, sul-africanos ou romenos. O que significa a sua nacionalidade? O que você sente quando se percebe de sua nacionalidade?

Isso não significa ignorar o mundo ou outros povos. E tampouco significa deixar de lado os avanços tecnológicos. Longe disso. A questão é que para eu oferecer aos estrangeiros algo de interessante e novo, eu preciso saber de onde vim. O que é bonito na cooperação entre os povos e nas relações internacionais é a troca de valores e princípios historicamente construídos por cada sociedade. Eu quero saber o que o russo tem para oferecer de novo para a minha visão de mundo. E eu quero oferecer a este russo aquilo que eu sei do mundo. Essa é a real integração entre povos. Este é o real cosmopolitismo. O que vivemos no atual processo de globalização é uma falsa integração. Se um russo e um americano utilizam o mesmo Iphone, por exemplo, e gostam das mesmas músicas, o que há de novo nisso? Onde estão as individualidades, onde estão os valores históricos que duas sociedades poderiam trocar?

Defender a tradição e repensar positivamente os estados-nação é a única maneira do homem do século XXI ser de fato livre. Pois a partir de sua base de mundo, ele pode se integrar ao diferente. E com o diferente, acumular conhecimentos e valores que aos poucos vão construindo uma comunidade internacional mais cooperativa. Isso vence o problema do “padrão de consumo norte-americano”. Eu quero um padrão de consumo brasileiro, um padrão de consumo japonês, um padrão de consumo indiano, um padrão de consumo de cada nacionalidade. Isso enriquece a experiência humana e também o próprio mercado.

Tais considerações me levam, portanto, a conclusão deste artigo.


Parte IV
Conclusão

Se vencermos a escassez cultural, a escassez de tradições, a escassez de valores e princípios ao redor do mundo, conseguiremos dar o primeiro passo para equilibrar a estrutura “informação, capital e escassez”.

A questão do capital depende unicamente do quanto uma nação é unificada em torno de um projeto nacional. O modelo que defendo para o mundo é multipolar. Ou seja, várias nações livres, autónomas e independentes, que participam do mercado global de maneira altiva e digna, respeitando as necessidades de suas gentes. Este tipo de mentalidade entre os povos é o que irá aumentar o nível de capital no planeta, tirando a concentração de riqueza de certas regiões do mundo e espalhando mais para outros lugares. E havendo maior acesso ao capital, haverá mais consumo. Mas um consumo enriquecido pela liberdade. Um planeta rodeado de culturas e povos autônomos, que convivem pacificamente na rede global de informação e mercados, trocando o que cada região do mundo tem para oferecer aos demais povos, é o único caminho na qual poderemos construir uma integração mundial.

Como disse na parte 1, quando há prosperidade, há também maior tendência para a cooperação. Em um mundo que caminha hoje para o conflito, temos escassez de todos os tipos, temos miséria e pobreza e temos assimetria de poder. Somente o oposto disso pode nos trazer paz e um futuro realmente desejável para as futuras gerações.

A liberdade no século XXI depende deste esforço. Um esforço coletivo de cada povo em cada canto deste planeta. A responsabilidade sobre a sua terra é somente dos povos que lá vivem. E é esta responsabilidade que poderá garantir algum futuro para a liberdade.

Obrigado pela leitura,

01 de Maio de 2017

Sasha Lamounier
Roma, Itália