A Liberdade no
Século XXI
Introdução
Para quem acompanha meus textos neste
blog, sabe que me considero um liberal de sentido clássico. Ou seja, um liberal
no mesmo sentido em que Adam Smith, Thomas Malthus, David Hume, John Locke,
Lord Acton, Francis Bacon, Montesquieu, John Stuart Mill e outros tantos também
eram. Defendo três princípios básicos, com ênfase em dois deles, quais sejam:
vida, liberdade e propriedade. Sendo a liberdade e a propriedade os dois
valores mais fundamentais para a existência de uma saudável vida humana. Assim
como estes clássicos, possuo o mesmo arco de reflexões e preocupações de
outrora. Mas adaptando-me ao meu tempo.
E como liberal, a questão da liberdade
humana não só me fascina como me inquieta. Questões como o que é a liberdade,
como ser livre e onde está a liberdade humana no mundo contemporâneo fazem
parte de minhas reflexões. E o que observo é um mundo informacionalmente
globalizado (graças a cada vez mais barata tecnologia da informação), mas efetivamente
dividido. Evidente que esta batalha se apresenta de maneira distinta em cada
região do mundo. Mas a guerra em si possui um elemento chave próprio: trata-se
de um conflito entre a globalização e o localismo enquanto identificações.
Atualmente, segundo minha interpretação,
o mercado mundial possui três estruturas:
A). Informação:
É através dela que o indivíduo e
instituições tomam conhecimento de um novo produto, ou de uma novidade que
aparece no mercado global. Isso significa que somente pela informação é
possível tomar conhecimento a cerca da novidade. Ou ainda, da oportunidade.
B). Capital:
Uma vez de posse da informação, o
indivíduo ou instituição tem a opção de ter acesso a oportunidade vislumbrada.
Por se tratar de uma novidade, a maioria tende a desejar o novo produto ou novo
serviço. É o que os economistas chamam de “risco-oportunidade”. Embora seja
bastante conhecido que este julgamento do consumidor não seja inteiramente
racional, mas ilustrativo. Para isso existe marketing, propaganda e
comunicação.
C). Escassez:
A informação é abundante, pois não
precisa de mais nada que não sejam os meios pelo qual algo é comunicado. O
capital é mais restrito, pois depende de financiamento, questões como
empregabilidade, condições de investimento e assim por diante. Entre o máximo
querer e o máximo poder, existe um vazio, um gap que chamo de escassez. Não
apenas de capital, mas de princípios, valores, referências simbólicas e
capacidades de se construir uma metalinguagem local que dialoga com a global.
Isso significa que o cidadão do século
XXI é constantemente apresentado a um enorme volume de informação. Afinal, esta
é a estrutura mais barata do mercado. Com base na informação, o cidadão toma a
decisão de possuir algo. Ele aqui se torna consumidor. E como consumidor, ele
precisará dos meios pelo qual terá acesso aquele desejo. Portanto, ele
precisará de capital. Não me refiro aqui apenas a capital enquanto dinheiro,
mas também enquanto ferramenta. Neste sentido, podemos nos referir a capital
político, capital artístico, capital social e assim por diante.
No entanto, apenas acesso a informação e
decisão de posse não são suficientes para compreender a realidade humana
moderna. Entre a informação recebida e a decisão de posse, há um conjunto de princípios,
valores e referências de longo prazo não considerados. Basicamente, estamos num
mundo onde o indivíduo é preparado inconscientemente para ser consumidor,
deixando de lado toda ordem de preceitos metafísicos e simbólicos que o constroem
enquanto ser humano. A isso eu chamo de escassez. E diante desta escassez, o
indivíduo tem poucas opções.
Na escassez de cultura implica que o
indivíduo busque a cultura que lhe é sedutora no turbilhão de informações. Na
escassez de referencial metafísico, a mesma coisa acontece. O que é a
singularidade tecnológica e o mito de que a tecnologia resolverá todos os
problemas da humanidade, se não uma mitologia dos tempos modernos? Na escassez
de opções, o indivíduo é influenciado a acreditar neste mito. A tecnologia é o
que lhe dá acesso a informação. Faz parte de sua realidade do dia-a-dia. Logo,
é mais fácil imaginar o futuro como algo tecnologicamente abundante do que
imaginar qualquer outro futuro. A escassez de opções nos leva a mitologias
absolutas. E a tecnologia, hoje, não é mais uma ferramenta da modernidade. É
uma ideologia por si mesma.
Dando um exemplo prático, nem todo
brasileiro pode ter o estilo de vida de um americano de classe média. No
entanto, ele se esforça além de suas possibilidades capitais de alcançar este
padrão de vida. Por qual motivo? Pela simples razão de que toda ou a maior
parte da informação que ele recebe é oriunda do padrão de vida norte-americano.
Logo, suas escolhas são enviesadas no intento de se ter o mesmo padrão de vida.
Se ele possuísse valores ou princípios
atemporais oriundas de sua localidade, de sua região de nascimento, ele
receberia a informação de fora e também geraria uma nova informação. Com isso,
o mercado se adaptaria aos valores e princípios do brasileiro. A própria
tecnologia seria obrigada a se adaptar aos anseios do povo brasileiro. O que
acontece hoje é justamente o contrário. Graças a escassez de valores e
princípios atemporais, o mercado molda a vida do brasileiro a sua vontade. E
podemos expandir este exemplo para as regiões subdesenvolvidas do mundo.
Portanto, temos aqui um problema muito
mais profundo do que esquerda ou direita. Muito mais delicado do que o terrorismo
islâmico. Vale lembrar que os terroristas também utilizam a tecnologia, a
informação e o capital para seus intentos. E seu fundamentalismo radical é uma
resposta violenta ao choque de civilizações ocasionado pela escassez de
princípios e valores atemporais que dialogam com o cosmopolitismo da globalização.
A liberdade humana está ameaçada como
nunca antes na história. Estamos aceitando hegemonias sem nos apercebermos
disso. A ideia de que a tecnologia nos levará para um futuro promissor é uma
mitologia hegemônica, um ideal absoluto. Não é questionado. Não é sequer
considerado uma ameaça. E é por isso que o homem está perdendo sua capacidade
ao contraditório. E junto dela, a sua liberdade.
A grande pergunta que me leva a escrever
este artigo é esta. Como podemos defender a liberdade humana sem negar a
informação, sem negar o capital e sem negar a globalização? Como podemos
garantir um contraditório num mundo que tende a equalizar os indivíduos não
mais como cidadãos, mas como “consumidores”? A mim parece temerário imaginar um
mundo onde as diferenças culturais se perdem. Gosto da Índia por ser a Índia. Gosto
dos EUA por ser os EUA. Gosto do Japão por ser o Japão. Gosto do Brasil por ser
o Brasil. E gosto da Europa por ser a Europa. Se tudo for globalizado tendo em
vista um grande mercado tecnológico fundamentado pela informação de massa, onde
ficará a interpretação? Para onde irá o diferente?
Caminhamos para um mundo de conflito
pois não temos as respostas para estas perguntas. Não temos um acordo entre as
identidades locais e a globalização. O choque de civilizações dá espaço para os
fundamentalismos. E com isso, criamos uma sociedade global autocrática, que
pensa como consumidor e não como cidadão. A estes problemas tentarei responder
nos próximos tópicos.
Parte I
A benevolência e
a Autocracia
Adam Smith, em “Teoria dos Sentimentos
Morais”, no Capítulo I (Sobre a Simpatia), escreveu:
“Quão
egoísta seja o homem, há nele evidentemente alguns princípios que o levam a se interessar
pela fortuna dos outros e torna necessária a sua felicidade, embora dela não
obtenha nada a não ser o prazer de constata-la. Dessa forma é a piedade ou a
compaixão, a emoção que sentimos diante da miséria dos outros, quando a vemos
ou a concebemos de uma maneira muito viva. Que muitas vezes ficamos tristes a partir
da tristeza dos outros, é óbvio demais para exigir quaisquer exemplos para prová-lo.
[…] Nós não temos uma experiência imediata do que os outros homens sentem, não
podemos formar a ideia da maneira em que eles são afetados, mas por conceber o
que nós mesmos deveríamos sentir na situação semelhante. Eles nunca fizeram, e
nunca podem, nos levar além de nossa própria pessoa, e é somente pela
imaginação que podemos formar qualquer concepção de quais são suas sensações.”
Em outras palavras, Smith explica neste
trecho que o ser humano naturalmente tende a sentir compaixão pelo outro. Não
porque ele é capaz de sentir a dor do outro, mas porque imagina em si mesmo o
que o outro sente. Portanto, daqui podemos observar a tendência para a
benevolência. Benevolência (termo usado muito por Smith) é a capacidade de se
solidarizar com outro e desejar seu bem, uma vez que consideramos que o bem
geral inclui o nosso próprio bem. Somos seres sociais. Imaginar o mundo a
partir de um prisma unicamente egoísta, sem a afetação do que as relações
sociais nos geram, é tudo menos benevolente e liberal. Imaginar o mundo como um
lugar onde não há afetação social é o mesmo que tiranizar a existência humana.
A esta tiranização chamamos de autocracia, pois é o poder absoluto de um Ego
que menospreza outros.
Para ratificar este aspecto social do
indivíduo, Ludwig von Mises escreveu em Ação Humana, página 69, o seguinte:
"Este individualismo metodológico tem sido veementemente atacado por várias escolas metafísicas e depreciado como uma falácia nominalista. A noção de um indivíduo, dizemos críticos, é uma abstração vazia. O homem verdadeiro é, necessariamente, sempre um membro de um conjunto social. É até mesmo impossível imaginar a existência de um homem separado do resto da humanidade, dissociado da sociedade. O homem como homem é o produto de uma evolução social. Sua característica mais importante, a razão, só poderia surgir numa estrutura de interdependência social. Não há pensamento que não dependa dos conceitos e noções da linguagem. E a linguagem é manifestamente um fenômeno social. O homem é sempre membro de uma coletividade. Como o conjunto é tanto lógica como temporalmente anterior às suas partes ou membros, o estudo do indivíduo é posterior ao estudo da sociedade. O único método adequado para o tratamento científico dos problemas humanos é o método utilizado pelo universalismo ou pelo coletivismo."
"Este individualismo metodológico tem sido veementemente atacado por várias escolas metafísicas e depreciado como uma falácia nominalista. A noção de um indivíduo, dizemos críticos, é uma abstração vazia. O homem verdadeiro é, necessariamente, sempre um membro de um conjunto social. É até mesmo impossível imaginar a existência de um homem separado do resto da humanidade, dissociado da sociedade. O homem como homem é o produto de uma evolução social. Sua característica mais importante, a razão, só poderia surgir numa estrutura de interdependência social. Não há pensamento que não dependa dos conceitos e noções da linguagem. E a linguagem é manifestamente um fenômeno social. O homem é sempre membro de uma coletividade. Como o conjunto é tanto lógica como temporalmente anterior às suas partes ou membros, o estudo do indivíduo é posterior ao estudo da sociedade. O único método adequado para o tratamento científico dos problemas humanos é o método utilizado pelo universalismo ou pelo coletivismo."
Portanto, por mais que o liberal reconheça
valor no indivíduo, ele jamais negou (e não pode negar), que o indivíduo é um
ente coletivo, construído na ordem social e nas suas relações com outros
indivíduos. A esta relação, construímos memória (experiências passadas),
desejos (expectativa de experiências) e interpretações da realidade (experiências
de momento). O indivíduo não é soberano como uma entidade “por si mesma”. Nem
pelo aspecto filosófico e nem mesmo biológico isso seria possível. O homem é um
ser social (ou político, segundo Aristóteles). E todo liberal sempre ratificou
isso.
Também segundo Smith, uma sociedade baseada na simpatia de uns com os outros, ou seja, na benevolência pública, é uma sociedade onde a liberdade pode dar frutos. Pois se todos os indivíduos de uma localidade se preocupam uns com os outros, então certamente a escassez de condições de uma vida digna será rapidamente superada. Daí que Adam Smith considera que o Estado tem a função de ofertar serviços básicos a sociedade, tais como: educação, saúde, saneamento básico, infraestrutura, justiça e defesa. Pois tendo acesso ao básico, todos os indivíduos serão capazes de viver sua liberdade.
Porém, uma sociedade autocrática,
portanto uma sociedade onde o indivíduo preocupa-se apenas com seu bem-estar ignorando os demais a sua volta, é uma
sociedade com tendência ao autoritarismo. A pobreza e miséria, neste contexto,
não apenas sobrevive como cresce. E onde há miséria há também conflito. O homem
jogado ao seu aspecto mais natural de todos (a sobrevivência) perde
completamente a capacidade de participar da sociedade e se torna um ente
absolutamente imediatista. Sua preocupação não será mais com aspectos morais ou
éticos, mas sim com o que ele irá se alimentar. Diante disso, a cultura
declina, os princípios e valores perdem força e o caos começa a imperar.
A obra “Teoria dos Sentimentos Morais”,
de Adam Smith, é talvez uma das principais obras do liberalismo clássico. Tanto
quanto A Riqueza das Nações, do mesmo autor. Pois ambos se complementam de modo
a oferecer ao leitor uma visão bastante completa do ideal empírico desejado por
um liberal clássico.
Anos mais tarde, John Stuart Mill
repetiria as palavras de Adam Smith. Em sua obra “Utilitarismo”, Mill afirma: “A proposição de que toda a felicidade é o
fim e meta da moralidade, não significa que não tenha de ser estabelecida uma
rota para esse objetivo, ou que as pessoas que o procuram não devam ser
aconselhadas a tomar uma direção em vez de outra. […] Todas as criaturas
racionais vão para o mar da vida com decisões já tomadas sobre as questões mais
comuns do correto e do incorreto, assim como as bem mais difíceis questões
relativas à prudência e à imprudência.”.
A cooperação entre miseráveis e pobres
existe ao passo em que a necessidade impõe esta cooperação. Mas no momento em que
for necessário escolher se você se alimenta ou se outro se alimenta, numa
sociedade miserável, a tendência é a escolha egoísta. Ou seja, é seguro afirmar
que onde há pobreza e miséria, há também maior competição entre indivíduos. Já
uma sociedade próspera, benevolente, onde todos os indivíduos possuem garantido
sua alimentação diária, por exemplo, é também uma sociedade mais cooperativa do
que competitiva. As diferenças continuam existindo, mas dentro de um padrão
tolerável de conflito. Já na miséria, o conflito é absoluto, estando na seara
da vida ou da morte.
Para que exista cooperação é necessário
antes de tudo um ambiente onde indivíduos estejam mais inclinados a cooperação
do que a competição. Na era primitiva, homens das cavernas caçavam em conjunto
para melhor aproveitar a oportunidade. Havia um contrato indireto sobre a alimentação
da tribo. Mas assim que aparecia outra tribo faminta desejando o alimento
conquistado, começava a competição. A maior parte (se não todos) os conflitos
na Idade da Pedra são por questões de escassez. A cooperação entre diferentes
sociedades se tornou usual a partir do sedentarismo, quando também as relações
sociais começaram a se complexar.
Mas é evidente que o sedentarismo não
resolveu o problema da escassez. E outros tipos de conflitos continuam a
existir. O ponto aqui, no entanto, são as tendências. Quando há escassez, ou
seja, miséria, há tendência para o conflito. Quando há prosperidade, há
tendência para a cooperação.
Portanto, é desejável que haja
prosperidade de cultura, prosperidade de pensamentos, prosperidade de
mitologias (utopias) e prosperidade de identidades nacionais. Se o mundo tende
a globalização, é necessário que esta globalização respeite as diferenças
locais e identitárias dos povos, razão pela qual o padrão de consumo não pode
ser determinado por uma única cultura, localidade ou sociedade, mas por todas
as culturas existentes na humanidade ao mesmo tempo. Para isso é necessário
sociedades com elevado grau de autonomia diante do teatro internacional, onde o
território local é tratado de maneira mais respeitosa do que apenas
mercadológica.
A benevolência de Smith, portanto, só
pode existir a partir de um nacionalismo liberal que proteja os princípios e
valores conquistados pela história de uma sociedade e inclua na experiência informacional
global informações destas localidades, tornando assim a cooperação mais
desejável. Em um mundo onde há escassez e hegemonias, a tendência é unicamente
para o conflito e miséria. E isso me leva ao segundo ponto desta explanação.
Parte II
O Nacionalismo Liberal
e os Estados-Nação
O leitor desavisado talvez estranhe o
termo “nacionalismo liberal”. Afinal, o nacionalismo não é algo contrário ao
liberalismo? A resposta a esta questão é simples. Mas antes, precisamos
entender o que é nacionalismo.
Segundo o
dicionário, nacionalismo se refere a “sentimento de pertencer a um
grupo por vínculos raciais, linguísticos e históricos que reivindica o direito
de formar uma nação autônoma.”. Portanto, podemos considerar que nacionalismo significa identidade. E
identidade é um ato voluntário de assimilação e aproximação entre pessoas que
convivem num mesmo território. Neste sentido, é perfeitamente compatível com o
liberalismo clássico.
O que liberais costumam combater é o nacionalismo antiliberal, aquele xenófobo
que coloca os símbolos nacionais acima de outros povos e indivíduos. Isso de
fato combatemos. Mas a assimilação identitária voluntária e a cooperação social
é algo intrínseco ao próprio liberalismo.
Antes de seguir a leitura, recomendo fortemente que o leitor assista a
palestra a seguir (em inglês):
Em resumo, podemos afirmar que existem duas escolas de pensamento a cerca
do nacionalismo. Uma que trata a nação como ideologia e a outra que trata como
identidade cultural. Através da palestra acima e do que já indicamos
anteriormente, o leitor provavelmente já percebe que o liberalismo defende a
tese do nacionalismo cultural. Quando o nacionalismo é posto como uma
ideologia, ele perde seu valor voluntário e se torna uma causa, uma bandeira
normativa. E portanto, impositiva.
Compreendido o que o liberal diz ao defender um nacionalismo, precisamos
compreender agora no que consiste este nacionalismo. Do ponto de vista
acadêmico, uma “nação” é composto por três elementos: povo, história (cultura)
e território. Ou seja, dentro de um território há um povo que possui relações
históricas e sociais identitárias uns com os outros e reproduz estas relações
sociais num conceito mais alargado denominado nação. Não existe nação sem uma
historicidade semelhante e sem um território que seja palco desta
historicidade.
O que é recente na história humana é o conceito de “estado-nação”. Ou seja,
a ideia de que uma cultura é governada por um mesmo Estado. Para ficar mais claro,
observe a seguinte imagem:
Figura
1 Na caixa amarela, a nação. Na caixa verde, o conjunto "estado-nação".
Nações, portanto, são conceitos antigos.
Desde antes do iluminismo haviam nações, compreendidos como povos que vivem num
mesmo território e possuem assimilações identitárias próximas. O estado-nação é
um fenômeno cuja criação remonta as Monarquias absolutas.
Na Idade Média, os territórios europeus
eram divididos entre propriedades controlados por um nobre. Estes nobres
acumulavam poder através da força armada e dos relacionamentos entre famílias
nobres. A Igreja detinha o papel de unificador cultural. Mas cada região possuía
suas características. Não existia, na era medieval, uma ideia de Estado da
Inglaterra, por exemplo. Existia o Reino da Inglaterra (nação), que era o
conjunto de propriedades assimiladas culturalmente e, portanto, inseridos num
domínio maior. O monarca medieval não tinha poder absoluto. Ele precisava
constantemente ter apoio de importantes nobres para, assim, manter o poder.
A partir do final da Idade Média e
início da Idade Moderna (1450-1770 d.C.), começam a surgir as monarquias absolutas.
Por diversas razões diferentes que não cabe explorarmos neste artigo, os Reis
europeus começaram a acumular poder de tal modo que o trono se tornou mais
poderoso do que as posses dos nobres. E a partir do Rei absoluto toda a cultura
de uma região (nação) ganhou um Estado unitário que o governaria (neste caso,
unificado na pessoa do monarca). Nesta época imperava o mercantilismo e a
expansão das nações europeias para o novo mundo. Temos aqui o embrião dos
estados-nação. Mas os estados-nação como conhecemos só surgiria de fato durante
a Revolução Industrial, quando os preceitos filosóficos construídos ao longo do
iluminismo ganhariam motivação económica, tornando-se um conjunto. Somente no
contexto nacionalista é possível assimilar o conceito de cidadania moderna.
Como afirma Lord Acton em “The History
of Freedom”, página 274:
“No
velho sistema europeu, os direitos das nacionalidades não eram nem reconhecidos
pelos governos nem afirmados pelo povo. O interesse das famílias reinantes, e
não das nações, regulava as fronteiras. E a administração foi conduzida
geralmente sem nenhuma referência aos desejos populares. Onde todas as
liberdades foram suprimidas, as reivindicações da independência nacional foram
necessariamente ignoradas, e uma princesa, nas palavras de Fénelon, carregou
uma monarquia em sua parcela do casamento.”
Segundo o historiador Karl Polanyi em
sua obra “A Grande Transformação”, de 1944, os estados-nação e a economia de
mercado são uma única coisa: a sociedade de mercado. Nasceram juntos e existem
juntos. Isso significa que o fim da monarquia absoluta e o nascimento do
constitucionalismo, assim como a divisão dos poderes em três clássicas
estruturas (executivo, legislativo e judiciário) fazem parte de um arranjo
burguês visando a expansão da indústria e dos mercados em ascensão no final do
século XVIII e começo do XIX.
Estados-nação são, portanto, um povo
dentro de um território governados por uma mesma estrutura de instituições chamado
Estado. As nações europeias foram as primeiras a explorar esta nova realidade.
Durante todo o século XIX, os estados-nação se desenvolveriam como entidades
aglutinadoras da história de um território e da construção de uma cognição
social nova: a nacionalidade. A ideia de pertencer a um país tornou-se o padrão
e dentro deste espectro, toda ordem de mudanças políticas começaram a emergir.
Como dito na parte I (sobre a
benevolência), todo indivíduo divide o tempo em três fases. A memória
(experiências passadas), o desejo (expetativa de experiências futuras) e a
interpretação (a experiência de momento). Tudo na vida humana tem um começo, um
meio e um fim. Tudo tem passado, presente e futuro. E na mentalidade nacionalista,
também. Povos que compartilham de um mesmo território, uma mesma bandeira e
símbolos nacionais, também compartilham memórias, desejos e interpretações da
realidade momentânea. Por exemplo, os EUA nasceu como estado-nação fundamentado
nos valores que os pais-fundadores do novo país aglutinaram durante a Guerra de
Independência. Mas tais valores não nasceram da noite para o dia. Eles foram
fermentados durante o processo de colonização inglesa até culminar numa
expectativa de futuro nacionalista.
A mesma coisa se deu com Alemanha e
Itália. Ambos eram, até a metade do século XIX, territórios com vários estados
autônomos. Mas em ambas as regiões, haviam autores, artistas e políticos
lutando por uma unificação cultural que desse origem a uma expectativa. Ou
seja, durante muito tempo os povos italianos e germânicos fermentaram uma ideia
de nação até, finalmente, se unificarem e formarem um estado-nação.
O processo é idêntico em toda parte do
mundo. No Japão, o moderno estado-nação foi desenhado através da Restauração
Meiji, quando o imperador Meiji fez uma série de reformas com o intuito de
unificar o povo japonês dentro de um moderno sistema de instituições que
inserisse o Japão no conjunto de estados-nação numa sociedade de mercado. Como
disse Polanyi, o conceito de estado-nação está diretamente ligado a economia de
mercado (industrial). Um e outro são dependentes mutuamente.
Na América Latina o processo de
independência dos países deram origem imediatamente a um estado-nação. Se
quisermos compreender onde está o pacto histórico destas sociedades,
precisaremos repensar suas fundações.
O capitalismo moderno, que permite a
própria revolução tecnológica que a sociedade contemporânea vislumbra, é
diretamente dependente deste arranjo. Não é possível acabar com os estados-nação,
pois isso enfraqueceria o arranjo industrial global que permite a investigação
e a inovação. Também não podemos acabar com a economia de mercado pois ela sustenta
os estados-nação. Logo, se desejamos um futuro promissor, precisamos aceitar o
fato de que os estados-nação (surgidos há apenas 200 anos atrás), ainda estão
se desenvolvendo. A atual crise não significa o fim dos estados-nação, mas a
sua adaptação.
Adam Smith estava à frente de seu tempo
quando defendeu um modelo de nacionalismo liberal. Somente a identidade
cultural voluntária e legítima pode formar um estado-nação autónomo, independente
e com expectativa de futuro. Quando um conjunto social possui uma história compartilhada,
possui também uma memória. De acordo com esta memória, a sociedade vislumbra as
possibilidades de futuro. E é através desta expectativa que um projeto de nação
é possível. Pois há unidade social suficiente para direcionar os costumes de
governo e de Estado, ao mesmo tempo em que fornece uma segurança de
continuidade para todas as gerações vindouras.
Neste sentido, há um valor intrínseco no
respeito as tradições de um povo. Assim como aos costumes. E é isso que me leva
ao terceiro tópico deste artigo.
Parte III
O homem finito
diante do tempo infinito
Estado-nação e economia de mercado não
podem andar em separado. O que temos hoje é uma tentativa da economia de
mercado ser mais preponderante do que os estados-nação. Neste sentido, temos um
sequestro do Estado por parte de grandes empresários, investidores e burgueses
que usam o aparelho estatal para ganhar vantagem diante de seus interesses.
Este fenômeno é global. As ideologias que defendem o fim da economia de mercado
não compreendem a real natureza do mesmo. Assim como as ideologias que defendem
o fim do Estado não fazem ideia do que estão falando. São utópicos que desejam
um mundo bonito da noite para o dia, ignorando todas as reais possibilidades
escondidas dentro do arranjo que atualmente já existe.
O mundo globalizado é uma ameaça aos
atuais estados-nação mas favorece absolutamente os interesses de grandes
industriais e investidores. Na sociedade de mercado, o cidadão também é
consumidor. Mas ele é antes de tudo um cidadão, pois o imperativo
histórico-cultural é anterior ao consumo individual. Todo indivíduo primeiro
surge num contexto familiar e depois, no percurso de seu desenvolvimento, se
torna um indivíduo com sua própria interpretação de mundo. O que estamos vendo
no começo deste século XXI é a tentativa de se ignorar o conceito de cidadão e
tornar toda a humanidade um conjunto de “consumidores”.
O problema é que quando todos se tornam
consumidores, não estamos vislumbrando aqui nem passado e nem futuro. Mas
apenas, o imediatismo do agora. Na introdução eu me referi as três estruturas
que fazem parte do mercado moderno: informação, capital e escassez. Quando o
indivíduo é colocado como consumidor e nada mais, ele é diretamente inserido
num turbilhão de informações que determinam o tipo de vida que ele viverá. O
risco-oportunidade o tempo inteiro aparece diante de seus olhos, numa
velocidade extremamente elevada, enquanto seu capital não consegue acompanhar o
volume de informações. Se ele não tiver uma base cultural forte, fatalmente
será controlado pela informação que recebe sem sequer perceber isso. São os
escravos que acreditam serem livres e que, por isso, defendem a sua escravidão a
todo custo.
O único meio de contornar este problema
é voltando as atenções para o conceito de estado-nação e sua reestruturação. Para
isso, os povos precisam urgentemente fazer um esforço memorável de recapitulação
dos valores e princípios que fundaram seu estado-nação e, através disso,
defender uma expectativa de futuro perdida no tempo. Quando todo estado-nação é
fundado, seus fundadores possuem expectativas na qual se baseiam na formulação
do novo país. Estas expectativas são o projeto de nação. Renovando-os
atentamente, os povos do mundo podem oferecer uma solução elegante, pacífica e
moderna para o problema da globalização e da perda de identidade local.
Projetos de nação renovados significa
também povos com um horizonte metafísico a ser perseguido. Aqui, vale fazer um
parêntese. Embora exista uma pretensa guerra filosófica entre ciência e
religião, não vejo razão pela qual ambos não possam dialogar. Seja qual for a
tradição religiosa de uma sociedade, ela pode muito bem fornecer subsídios para
uma contínua exploração da ciência visando o bem comum da humanidade. A ciência
é um conjunto de métodos que visa explicar como as coisas funcionam.
Filosoficamente, é esta a sua função. O leitor pode procurar qualquer área
científica e perguntar o que as suas teorias respondem. E tudo o que verá é que
cada área da ciência, cada teoria é apenas uma proposta de solução para o
problema de “como as coisas funcionam”.
Mas a ciência não responde a outra
pergunta necessária para a construção da realidade humana. O “por quê” as
coisas são como são. A ciência diz como é, mas é incapaz de aprofundar os “comos”
e dar um significado a cada coisa. O significado das coisas são originadas na
indagação “por quê”. Por qual motivo as coisas são como são? Ninguém possui uma
resposta absoluta, mas há diversas respostas que valem a pena ser respeitadas e
pensadas. E isso inclui as sociedades nacionais. Dentro de uma nação, há um
conjunto de religiões, algumas mais predominantes que outras, que insuflam
princípios e valores importantes para esta sociedade. Estes princípios é o que
dá significado para a existência. São os famosos “valores” que nossos
ancestrais tanto falavam. E de fato, um indivíduo sem valores metafísicos ou
atemporais, é um indivíduo escravo do seu tempo.
A vida humana é finita. Todos que hoje
estão vivos um dia se unirão ao conjunto de gentes que descansa entre os
mortos. As futuras gerações, que sequer nasceram, a mesma coisa. Nesta vida
viemos de passagem. Mas o que fazemos permanece diante de nossos filhos, netos
e bisnetos. O que fazemos em vida, fica para os vivos. E são os vivos que, no
conjunto “memória, desejos e interpretações”, moldam a realidade e que vivemos.
Ao reviver as expectativas que deram
origem aos estados-nação, revivemos também esta metafísica atemporal, que nos
dá a ideia de continuidade. E dentro de uma ideia de continuidade, o progresso
é possível. Portanto, a própria liberdade individual depende de se fortalecer
os estados-nação no século XXI. Sem eles, estaremos completamente perdidos
diante da imperiosa economia de mercado, governada pelo interesse plutocrático
onde as vozes do homem simples são ignoradas. O iluminismo acabou com a
monarquia absoluta para criar um ambiente onde o cidadão possa construir sua
liberdade. E hoje estamos na fronteira onde este sonho iluminista criou um
efeito colateral, um novo absolutismo e uma nova ameaça ao indivíduo. O
absolutismo das utopias mercadológicas e os senhores absolutos que controlam a
informação e o capital.
Precisamos fazer um acordo com o tempo.
Se os estados-nação representam a atemporalidade, a continuidade e o mercado
representa a mudança contínua e o imediatismo, há de se fortalecer o elo mais
fraco. Fortalecer os estados-nação é muito mais do que fortalecer os Estados.
Precisamos fortalecer as culturas locais, as tradições locais, relembrar aquilo
que nos identifica como brasileiros, portugueses, americanos, japoneses,
russos, sul-africanos ou romenos. O que significa a sua nacionalidade? O que
você sente quando se percebe de sua nacionalidade?
Isso não significa ignorar o mundo ou
outros povos. E tampouco significa deixar de lado os avanços tecnológicos.
Longe disso. A questão é que para eu oferecer aos estrangeiros algo de
interessante e novo, eu preciso saber de onde vim. O que é bonito na cooperação
entre os povos e nas relações internacionais é a troca de valores e princípios historicamente
construídos por cada sociedade. Eu quero saber o que o russo tem para oferecer
de novo para a minha visão de mundo. E eu quero oferecer a este russo aquilo
que eu sei do mundo. Essa é a real integração entre povos. Este é o real cosmopolitismo.
O que vivemos no atual processo de globalização é uma falsa integração. Se um
russo e um americano utilizam o mesmo Iphone, por exemplo, e gostam das mesmas
músicas, o que há de novo nisso? Onde estão as individualidades, onde estão os
valores históricos que duas sociedades poderiam trocar?
Defender a tradição e repensar
positivamente os estados-nação é a única maneira do homem do século XXI ser de
fato livre. Pois a partir de sua base de mundo, ele pode se integrar ao
diferente. E com o diferente, acumular conhecimentos e valores que aos poucos
vão construindo uma comunidade internacional mais cooperativa. Isso vence o
problema do “padrão de consumo norte-americano”. Eu quero um padrão de consumo
brasileiro, um padrão de consumo japonês, um padrão de consumo indiano, um
padrão de consumo de cada nacionalidade. Isso enriquece a experiência humana e
também o próprio mercado.
Tais considerações me levam, portanto, a
conclusão deste artigo.
Parte IV
Conclusão
Se vencermos a escassez cultural, a
escassez de tradições, a escassez de valores e princípios ao redor do mundo,
conseguiremos dar o primeiro passo para equilibrar a estrutura “informação,
capital e escassez”.
A questão do capital depende unicamente
do quanto uma nação é unificada em torno de um projeto nacional. O modelo que
defendo para o mundo é multipolar. Ou seja, várias nações livres, autónomas e
independentes, que participam do mercado global de maneira altiva e digna,
respeitando as necessidades de suas gentes. Este tipo de mentalidade entre os
povos é o que irá aumentar o nível de capital no planeta, tirando a
concentração de riqueza de certas regiões do mundo e espalhando mais para
outros lugares. E havendo maior acesso ao capital, haverá mais consumo. Mas um
consumo enriquecido pela liberdade. Um planeta rodeado de culturas e povos
autônomos, que convivem pacificamente na rede global de informação e mercados,
trocando o que cada região do mundo tem para oferecer aos demais povos, é o
único caminho na qual poderemos construir uma integração mundial.
Como disse na parte 1, quando há
prosperidade, há também maior tendência para a cooperação. Em um mundo que
caminha hoje para o conflito, temos escassez de todos os tipos, temos miséria e
pobreza e temos assimetria de poder. Somente o oposto disso pode nos trazer paz
e um futuro realmente desejável para as futuras gerações.
A liberdade no século XXI depende deste
esforço. Um esforço coletivo de cada povo em cada canto deste planeta. A
responsabilidade sobre a sua terra é somente dos povos que lá vivem. E é esta
responsabilidade que poderá garantir algum futuro para a liberdade.
Obrigado pela leitura,
01 de Maio de 2017
Sasha Lamounier
Roma, Itália