ENTENDENDO O CONTRATO SOCIAL
Introdução
A intenção deste artigo é ser didático e
objetivo. A contextualização histórica do que levou os três diferentes e
principais autores (Hobbes, Locke e Rousseau) a discorrerem sobre o contrato
social, demandaria um artigo a parte. Assim como necessitaria de outro artigo
para tratar dos comentadores e estudiosos do contrato social. Portanto, citarei
os autores clássicos de modo pontual sem maiores danos a praticidade deste
artigo.
Uma das maiores falácias contra o Estado
é o velho argumento "onde assinei o contrato social". Ao invés de
recorrer a toda rica fonte de autores que tratam do tema, buscarei explicar de
maneira simples o que é o contrato social, se existe e como funciona para, a
partir disso, passarmos a ler os clássicos (aqui citados) e entender o que eles
querem dizer com suas obras.
Então vamos começar do começo. Quando o
homem nasce, ele é um ser completamente indefeso. Ao contrário de outros
animais, o homo sapiens filhote é incapaz de fugir das presas e de preservar
sua vida sem a ajuda de outro homo sapiens mais capaz. Isso é um fato. Inclusive,
a família é a primeira instituição de uma civilização. Entenda por família quem
produz a espécie e a mantêm. Portanto, desde o começo da vida humana nós já
sabemos que o “direito natural”, sozinho, não significa muita coisa. “Ter” o
direito natural não impede que o ser humano tenha seus direitos infligidos. É
por isso que bebês choram. É a única forma, instintiva, que conhecem de
expressar suas necessidades.
Esta diferença na formação do homo
sapiens indica que somos uma espécie muito frágil para um mundo tão brutal. Claro
que poderíamos citar o indelével avanço genético que nossa espécie sofreu até
que tivéssemos um crânio e um cérebro maior, capaz de gerar uma cognição mais
ampla. Mas, isso não é muito importante neste artigo. O que importa são os
fatos. E, em posse deles, o fato é que nos adaptamos a uma situação de perigo
iminente, onde não só a natureza em si poderia nos destruir, como também outros
homo sapiens poderiam nos destruir repentinamente e por motivos diversos. Em
seu surgimento, o homo sapiens era uma população minoritária no planeta. Portanto,
em todos os sentidos, na luta pela sobrevivência, a humanidade começou
perdendo. O que nos fez avançar foi à sociedade. Portanto, a civilização, o
conjunto cooperativo de homo sapiens organizados em torno de objetivos comuns.
Mas o que são os direitos naturais? São
condições que o homem possui ao nascer. Portanto, logicamente, ao nascer à
primeira coisa que a natureza lhe deu foi à vida. Com ela você pode fazer o que
quiser de acordo com o contexto que o ambiente lhe propicia. Isso é liberdade.
E você tem em seu corpo o local onde vive a vida e a liberdade. Isso é
propriedade. Surge assim a tríade clássica dos direitos naturais: vida,
liberdade e propriedade.
O Estado de Natureza
Mas eles só conseguem ser plenos no estado de natureza, uma interpretação
central para a compreensão do contrato social. E é aqui, no estado de natureza,
que começa o problema. Para Hobbes, o estado de natureza existiu e era
basicamente formado por uma condição de constante guerra, pois o homem é
naturalmente egoísta e buscaria preservar seus interesses individuais (vida,
liberdade e propriedade), como bem quisesse. Daqui surge a famosa frase
hobbesiana “o homem é lobo do homem”. Para Locke, o estado de natureza ainda
permanece hoje, porém controlado devido ao interesse comum de viver
pacificamente em busca da prosperidade. Já para Rousseau, contrariando os dois últimos
autores, a vida no estado de natureza era pacífica e harmoniosa, pois a
natureza dava ao homem tudo aquilo que ele necessitava. É a tese do “bom
selvagem”. Apesar destas diferentes interpretações, os três autores concordam
que este estado de natureza existiu, em teoria ou prática e que foi a partir
dele que surgiram as civilizações posteriores. Ou seja, foi superando o estado
de natureza que a história (com H) começou.
Como alertado no início deste artigo,
não é de nosso interesse agora buscar compreender cada um dos autores, mas sim
o conceito que constitui o contratualismo, discorrido pelos três.
Sendo assim e com o que já temos até
aqui, vamos considerar alguns fatos:
1º. Todo ser humano tem direito natural
à própria vida, liberdade e propriedade.
Mas para Hobbes e Locke isso, por si só,
não é suficiente. Como espécie, queremos sobreviver. Mas fazemos diferentes
interpretações desta busca. Portanto, não somos pacíficos. Queremos a nossa
sobrevivência nem que para isso seja necessário impedir a do outro. Isso nos
leva ao segundo fato.
2º. Estes direitos precisam, igualmente,
que sejam respeitados impositivamente para que não sejam infligidos por
terceiros.
Aqui já nasce o conceito de contrato.
Somos naturalmente livres, mas abdicamos de parte de nossa liberdade, em nome
de uma força coercitiva que obrigue os depredadores dos direitos naturais a nos
respeitarem. Tanto para Hobbes como para Locke é este o conceito de Estado e
sua função na vida humana. Podemos considerar Estados desde os primeiros clãs
(famílias) que se uniam em torno de grupos armados de caçadores-guerreiros, até
os Estados modernos que a rigor possuem os mesmos caçadores-guerreiros, mas com
outros nomes.
O Contrato Social e seus autores
Para Rousseau, porém, tudo o que surgiu
como superação do estado de natureza foi uma corrupção dos valores naturais do
homem. Ou seja, para ele a propriedade privada era a chave pela qual a
humanidade perdeu sua “pureza”. A maçã do pecado é a propriedade privada que
daria origem aos Estados. Para Hobbes e Locke é basicamente a propriedade
privada (direito de propriedade) que geraria o surgimento dos Estados (clãs,
tribos, reinos, impérios, nações etc). Nota-se que os três autores concordam em
uma coisa: a propriedade privada gerou o Estado. Para Rousseau isso é negativo,
mas para Hobbes e Locke isso é positivo. Para Hobbes, especialmente, a
produtividade só é possível em uma ordem social pacífica, onde desordeiros da
vida humana seriam coibidos por um poder central e forte, legitimado por todos
os seres humanos que estivessem comprometidos com a preservação dos direitos
naturais. Para Locke, o princípio é o mesmo, com uma diferença simples. Este
poder central e forte seria uma construção constante tendo como base a
racionalidade humana. Ambos endossam a liberdade como o impulso que moveu os
homens a criarem o Estado, visto que a sobrevivência é uma necessidade do homem
para além de suas vontades.
Já Rousseau diz que esta liberdade não é
plena se não houver igualdade entre os homens (igualdade esta em todos os
sentidos, principalmente de poder). Por isso que a propriedade privada é um
corruptor do ser humano, para Rousseau. A igualdade é um princípio mais
preponderante e é esta busca que norteia todo o trabalhou rousseaniano.
Sendo assim, compreendendo o que os
autores refletem, já temos uma definição de contrato social. O contrato social
nada mais é do que a voluntária associação de homo sapiens em busca da
preservação de seus direitos naturais, estabelecendo, para isso, regras de
convívio social e um centro de comando que administra estas regras e as impõe
diante daqueles que discordam destas regras. É voluntário, pois os homens
abdicam (abdicar - verbo indicador de ação) de seus direitos plenos em nome de
um bem maior: a convivência pacífica. Ninguém impôs o contrato social, visto
que ele não existia no estado de natureza. Foi a voluntariedade humana que a
criou!
Respondendo aquela falácia citada no
começo do artigo: onde, então, assinei o contrato social? A resposta é simples:
ao nascer. O contrato social, por ser uma cooperação coletiva pela preservação
dos direitos naturais (ganhos pelo homem ao nascer), endossa que todo ser
humano tem o direito a vida, a liberdade e a propriedade. Mas que a simples
existência destes direitos não é suficiente para garanti-los. Por isso a
coerção se faz necessária. Deste ponto em diante, podemos compreender todo o
arcabouço da ciência política moderna, desde os contratualistas até os
utilitaristas e juspositivistas de modo geral.
Considerações Finais
Entendendo isso, compreendemos também o
conceito de sociedade civil. A sociedade civil é feita por todos os seres
humanos (homo sapiens) nascidos dentro de um contrato social (Estado). Isso nos
torna cidadãos, ou seja, membros da cidade. Foi com Hobbes e Locke que nasceu o
conceito de cidadão moderno (influenciados por Aristóteles). E com o conceito
de cidadão, surge o conceito de individualidade, tão caro aos liberais. Só há
individualidade positiva se houver contrato social. Pois sem o contrato social,
estamos no estado de natureza, onde todo homem é livre para fazer o que quiser,
sem repreensões morais, pois estas são advindas da civilização e não da
natureza (que é amoral). A própria cultura começa a partir do momento em que há
contrato social. Os valores são construções da civilização ao longo dos
milênios. Sempre visando à compreensão da realidade e a preservação da espécie.
Há outro fato que nos ajuda a compreender
o conceito de cidadania no contrato social dos Estados modernos. Todo ser
humano já nasce dentro de um território pertencente a um grupo de seres humanos
que compartilham do mesmo lugar. O território é um recurso escasso, vide que há
um limite geográfico no globo terrestre. E todo homem nasce, necessariamente,
em um destes territórios. Se ele assina o contrato social ao nascer, então por
direito de nascimento ele é um dos donos daquele território! É a forma de
preservar o direito natural a propriedade para todos os indivíduos. Mas como o
homem é um animal social e não individualista, pois ele necessita de humanidade
para existir e compartilhar do território, então ele é proprietário-sócio de um
grande esforço coletivo chamado país (Estado-nação).
A dicotomia entre Hobbes/Locke e Rousseau
é a velha discussão filosófica da natureza humana. Qual é a natureza do homem?
Ele é naturalmente bom e a sociedade o corrompe, ou ele é lobo de si mesmo? São
as perguntas que filósofos de todas as eras tentaram responder, e os
contratualistas não fugiram da regra. O liberal, por ser influenciado especialmente
por Locke, mas também por Hobbes, entende que o homem tende a ser egoísta e
que, portanto, não está naturalmente direcionado a uma convivência pacífica.
Somos seres racionais e, como seres racionais, criamos o Estado, justamente
para coibir a irracionalidade que também faz parte do ser humano. A função do
Estado, portanto, é a segurança e a justiça, pois é com isso que se preservam
os direitos naturais.
Há uma diferença fundamental entre os
três autores, que deve ser ressaltada. Para Hobbes, o estado forte e central
existia numa relação hegemônica. O homem nasceu num estado de natureza por ele
denominado “todos contra todos”. Por isso, é importante que o Estado tenha participação
ativa na sociedade. É o famoso Leviatã. Já para Locke, o contrato social é
formado pela confiança e consentimento. O homem abdica de parte de seus
direitos naturais plenos para, através da racionalidade, estipular governo que,
numa via comum entre sociedade e autoridade, organizariam a vida social de modo
a preservar os direitos naturais, especialmente o de propriedade. O Estado para
Locke não deve ser forte e central como para Hobbes. Mas sim, uma troca onde o
governo serve ao povo e o povo abdica da plenitude de seus direitos naturais em
troca de um bem comum (é uma relação de reciprocidade). Já Rousseau diz que o
Estado é a unidade que representa a vontade geral. Ou seja, se Hobbes e Locke dizem
que o Estado é uma necessidade da humanidade, Rousseau diz que é parte da
própria natureza do homem e que tudo feito pelo Estado, se legitimado pelo
povo, é de fato legítimo, pois representa a vontade geral, o desejo mútuo da
maioria.
Em suma, toda organização humana demanda
contratos. E o contrato social nada mais é do que o direito natural positivado.
A partir do momento em que há quem obrigue que certos direitos sejam respeitados,
ativa ou passivamente, há contrato social. O estado de natureza, que Hobbes e
Locke se opunham, era justamente a condição de vida humana primitiva onde não
havia nenhuma garantia dos direitos naturais.
É uma compreensão simples e eficaz.
Creio que neste artigo consegui expressar com certa exatidão o conceito do
contrato social e demonstrar que sim, ele existe. Sim, ele funciona. E sim, ele
é necessário. Qualquer um que imagine um mundo sem Estados, estará imaginando
um mundo sem contratos sociais. Portanto, sem garantia dos direitos naturais. O
fato é que se nenhuma experiência humana progrediu sem a presença de um
contrato social, é porque empiricamente, na experiência humana, ele é um fato
incontestável. E, ainda mais, sem contrato social não haveria civilização e sem
civilização, não haveria nem mesmo o conceito de individualidade e liberdade.
Obrigado pela leitura,
Sasha Lamounier,
Um liberal Clássico
Porto, Portugal - 11 de Dezembro de 2014.