21/07/2015

Capitalismo: uma invenção liberal clássica



Capitalismo: uma invenção liberal clássica

Por 
Sasha Lamounier


Este texto é produto de uma série de aferições confeccionadas por mim, Sasha Lamounier, no intento de demonstrar a linha cronológica que criaria o sistema que hoje conhecemos como capitalismo e livre mercado. O presente texto foi criado como plataforma para o debate do dia 19 de Julho de 2015, onde eu confrontei a tese anarco-capitalista com a visão liberal clássica do mercado, da sociedade e do Estado.



INTRODUÇÃO


Eu sou um liberal clássico. E como tal, defendo que o mercado é eficiente. Defendo o livre mercado. Foi a minha ideologia que criou o termo laissez-faire. Portanto, neste debate (liberais versus anarco-capitalistas) não há ninguém que discorde que o mercado seja eficiente ou que existe a auto-regulação. O que existe aqui é uma discordância quanto à existência ou não do Estado.

Todos nós concordamos que o ser humano busca potencializar sua felicidade. Isso não é nenhuma novidade. Contudo, há de se fazer uma distinção. O entendimento de que o homem busca potencializar sua felicidade (portanto, seu bem estar individual) é um entendimento recente, com cerca de 250 anos de idade. Antes, a ideia padrão era de que o homem nascia predestinado e sua função nesta vida não era a felicidade, mas sim a vontade de Deus. Seja essa vontade qual for: matar, roubar, salvar, punir, converter etc.

Com o advento da burguesia e da reforma protestante, começou a surgir na Europa renascentista uma nova perspectiva. Devido ao comércio, antigas ideias oriundas da civilização Greco-romana começaram a adentrar nos círculos teológicos da Igreja Católica com uma perspectiva mais humanizada, que conflitava com a visão divina do homem. Pouco a pouco, o teocentrismo (Deus como centro do universo) da Idade Média começou a dar lugar ao antropocentrismo (o homem como centro do universo). Surge Martinho Lutero e o luteranismo, surge João Calvino e o calvinismo e, finalmente, o anglicanismo de Henrique VIII.

Diversos motivos levam a ética liberal a surgir como “produto a ser vendido”, primeiro, na Inglaterra. O país foi um dos principais jogadores na era mercantilista, que, por sinal, teve seu apogeu durante as eras Tudor e Stuart. Não coincidentemente, Henrique VIII era um Tudor. Durante todo o processo mercantilista, os centros urbanos foram ganhando cada vez maior importância, devido à oportunidade de vida impulsionada pelos portos e pelas navegações. A agitação política na Inglaterra, entre os protestantes e os católicos, gerou o que viria a ser as duas Guerras Civis inglesas, cujo desfecho “glorioso” selaria definitivamente o modelo ideal de uma nova política: o poder descentralizado. John Locke surge neste contexto, apresentando no Dois Tratados do Governo e Da Tolerância, a consistente ética liberal que impulsionaria os movimentos posteriores.Surge a ideia de que o homem possui direitos individuais, tais como a vida, liberdade e propriedade e estes devem ser respeitados.

Locke influenciou intelectuais na França, entre eles Voltaire. E este, por sua vez, influenciou Adam Smith, que através de seus estudos do comércio e da geração de riqueza, aliaria os conceitos de liberdade apreendidos de Voltaire e Locke para, assim, dar forma ao que viria a ser a ciência econômica. Smith, junto de Francis Bacon e David Hume, fazia parte da tradição empírica do liberalismo. Aquela na qual nos baseamos em fatos para compreender a realidade (realismo).

Dito isso, surge uma ruptura progressiva do antigo sistema moral (teocrático) para o novo sistema moral (liberal). A ideia que temos de que o homem quer, apenas, viver sua vida individual pacificamente sem ser importunado por outras pessoas nasce aqui, nesta ruptura. Portanto, surge do liberalismo clássico. Junto desta ideia, surge o moderno capitalismo. Foi no século XVIII que a Inglaterra tornou-se pioneira da Revolução Industrial, muito devido ao comércio e ao mercado de tecidos inglês (que de artesanal passou para industrial, visando atender um mercado cada vez maior).



1. Livre Mercado e Estado Liberal: uma única ética


Traduzindo isso para a linguagem econômica, percebemos um claro padrão. Primeiro, o capitalismo como conhecemos não surgiu do nada. Ele é fruto de um longo processo cultural, social, político, religioso e prático que foi se desenvolvendo ao longo do século XV e XVII. Ao mesmo tempo em que o capitalismo surgia como sistema, o Estado teocrático (absoluto) sofria imensas mudanças, dando lugar ao Estado liberal (de poder descentralizado).

Se for verdade (e todos concordam neste aspecto) que o mercado é eficiente, então todos concordam que os mercados atingem um ponto de equilíbrio entre a oferta e a demanda. A partir da análise da história, fica evidente que ao passo que surge uma demanda por maior liberdade individual, a oferta de um Estado descentralizado é cada vez maior. Isso significa que há uma evidente relação entre as liberdades individuais e o Estado (não de sua ausência, mas da qualidade de sua presença). Por isso a ética liberal nunca foi e não é anárquica, pois para que exista o livre mercado, a ética liberal demanda sua própria existência. E isso só pode ser atingindo via Estado.

O produto “ética liberal”, produzido durante o contexto histórico do século XV, XVI e XVII, teve seus pioneiros: Thomas Hobbes, John Locke, Voltaire, Adam Smith, David Hume, David Ricardo, Montesquieu e assim por diante. Portanto, frisa-se: a ética liberal é produto do empirismo inglês. Dogmatizar a ética liberal é fugir de sua origem e destoar o próprio conceito.

Este novo produto surgiu para atender uma demanda criada naturalmente no processo histórico europeu (Hegel). Hoje em dia, passados 200 anos, a Europa viveu diversas diferentes situações que demonstram a tentativa constante destes países e suas culturas encontrarem o ponto de equilíbrio do mercado “ética liberal”. Hoje podemos dizer que o país que atingiu este ponto de equilíbrio (portanto, a eficiência de mercado do produto ética liberal) é a Suíça. O país tem um estado proporcional às liberdades individuais e vice-versa. O povo tem exatamente aquilo que demanda e o Estado oferta exatamente aquilo que é procurado. Sim, os mercados são eficientes e no que tange o produto “ética liberal”, a Suíça é o claro exemplo de equilíbrio.

A ética liberal significa liberdade econômica e civil. O produto consequente desta ética é o Estado liberal. Assumindo que os mercados se equilibram, pois a humanidade é racional e irá maximizar suas necessidades, é empiricamente demonstrável que o entendimento de que a busca da felicidade é o objetivo da vida humana, diferentes formas de organização social surgem. Se o território é um recurso escasso e se a liberdade política é parte da ética liberal, então fica óbvio que os países com acesso a ética liberal tendem, cada vez mais, equilibrar a oferta de ética liberal com a procura por ela.

Tendo como base estes fatos, podemos analisar outros países. Por exemplo, o Brasil. Qual é a oferta de ética liberal no Brasil em comparação aos EUA, que nasceu fundado na ética liberal? O Brasil nasceu fundado na ética católica, ainda remanescente do teocentrismo. Portanto, nosso problema é que ainda vivemos sobre um produto antigo, defasado. O novo produto que a humanidade tem endossado há 250 anos (ética liberal) ainda não é ofertado a contento na sociedade brasileira. E também não é ofertado a contento em outras tantas nações. Há tentativas, e isso cria pequenas mudanças progressivas.

Por exemplo, a constituição de 1824 e o Império de Pedro II foi uma aplicação da ética liberal no contexto brasileiro. Mas como a procura pela ética liberal era diminuta e a oferta era muita, o Império não conseguiu se sustentar, pois vendia caro um produto (liberdade) pouco procurado (país conservador, religioso ao extremo, escravagista). Como toda empresa, sem capacidade de se manter, faliu, dando lugar à concorrência republicana. Concorrência essa que já nascia com os piores vícios da sociedade brasileira, ainda remanescente da velha ética teocrática.

O capitalismo é um sistema econômico liberal por excelência. Surgiu junto das convulsões políticas e sociais de sua época, surgiu junto do Estado limitado inglês. Prova disso é a origem da Revolução Industrial e o surgimento do sistema financeiro dos EUA (criado por Alexander Hamilton, primeiro secretário dos EUA).

A anarquia (ausência de governo) não é uma demanda social. Na verdade, defender o capitalismo sem o Estado liberal é como defender a Microsoft, mas ser contra o Windows. O Estado liberal é produto da auto-regulação social. Ser contra o modelo de estado liberal, aquele que nasceu junto do capitalismo, é ser contra as decisões do mercado e, por tabela, ser contra o capitalismo. Prova disso é que o mercado equilibrado da ética liberal, a Suíça, não aboliu o Estado. E aquele povo é um dos mais livres que a história da humanidade já teve notícia.

A Suíça é tão estável, que as principais instituições internacionais de garantia da ÉTICA LIBERAL estão situadas lá: Organização das Nações Unidas (ONU), Organização Mundial da Saúde (OMS), Organização Mundial do Comércio (OMC), Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICR), Organização Europeia para a Investigação Nuclear (CERN), Organização Internacional do Trabalho (OIT) etc.

Portanto, o Estado liberal (constitucional, com limitação de poder, tripartição, direitos civis garantidos, direitos humanos, respeito à vida, liberdade e propriedade) é uma CONSEQUÊNCIA direta do advento do capitalismo. Novamente, basta recordar a história. O capitalismo como sistema surgiu ao mesmo tempo em que o antigo regime era questionado e nascia o novo regime. Logo, o novo regime É o regime capitalista.

Além disso, se os agentes são racionais, por óbvio o que temos na humanidade atualmente é produto das decisões destes seres humanos racionais. Quem é contra estas decisões é, na verdade, intervencionista. O ancap (anarquista de mercado) é um intervencionista na pura decisão do mercado: Estados liberais.


2. O erro do consequencialismo anárquico;


David Friedman, em sua obra “Engrenagens da Liberdade”, parte de uma série de pressupostos para defender que o mercado tem melhores soluções do que o Estado e que este não é necessário. Para chegar nesta conclusão, ele parte da premissa de que o mercado é eficiente, pois devido à concorrência, os serviços são mais bem executados e o bem público (Estado) é inferior ao bem privado (empresas).

Em suma, pode-se resumir o argumento consequencialista no seguinte silogismo: “O mercado é eficiente, o Estado é ineficiente. Portanto, acabemos com o Estado”.

A amostra de David Friedman é a sociedade norte-americana moderna. Portanto, sua análise é baseada numa realidade pautada na ética liberal. As pessoas sabem o que é direito à vida, a liberdade e a propriedade. Foram educadas desde sempre assim. Sabem o valor do trabalho, da geração de riqueza, dos contratos e foram educadas para isso desde sempre. Contudo, esta amostra é pertencente a um universo onde o Estado existe.

Quando David Friedman tira o Estado da conta, ele tira o governo como instituição pública e transfere os mesmos preceitos para as instituições privadas. Mas ele não abole o governo, pois reconhece (intuitivamente) que esta instituição é natural. No fundo, ele defende o que já existe, mas promovendo concorrência entre agências de segurança e justiça privadas (os governos privados). Pois é na concorrência, diz ele, que o serviço é mais bem entregue. Uma vez que o Estado tem o monopólio dos serviços de segurança e justiça, estes não mais serão tão eficientes como poderiam ser.

Como liberal clássico, concordamos que o mercado é eficiente. E mais ainda, concordamos que agências privadas de segurança e justiça podem e devem atuar na sociedade, de modo a maximizar os ganhos do indivíduo em detrimento da preservação de seus direitos. Mas, porque então deveria o Estado continuar existindo? Após tudo o que já foi dito, o leitor sagaz saberá a resposta. Mas vamos investigar mesmo assim.

A ética liberal é uma construção social, histórica e cultural. Portanto é uma evolução da civilização. A eficiência do mercado que tanto David Friedman como os liberais clássicos defendem, é produto direto do desenvolvimento de uma ética liberal. E isso quer dizer que a ética liberal é um produto desenvolvido por gerações, pelo tempo, pela experiência do erro e acerto. Uma ética construída dentro de uma jurisdição pública (os atuais Estados).

A constituição é uma prerrogativa para a preservação da estabilidade e o legado de longo termo essencial para a continuação da sociedade civilizada. Sua função não é garantir o poder, mas manter livre o espaço onde não há poder algum. O governo é, em último caso, o conjunto de lições que aprendemos com nossas próprias contradições em nosso próprio caráter.

Os argumentos de David Friedman são eivados de uma grande fé que a humanidade viverá eternamente sob a ética liberal. Contudo, nem sempre foi assim. A ética liberal nasceu num contexto histórico, derivado de uma mudança de paradigma na Europa renascentista. E mais ainda, o mundo moderno não vive inteiramente sobre a ética liberal. Portanto, crer que sem o Estado esta ética seria o "produto natural" da sociedade, é um tremendo erro lógico. O que o leva a crer que a ética liberal sobreviverá sem um espaço onde as contradições humanas sejam conflitadas? 

A existência do governo é, mais do que uma questão de eficiência, uma necessidade educativa. Como alcançaríamos a ética liberal, sem antes passar por todas as experiências possíveis de um Estado teocrático? Como chegaríamos ao livre mercado, sem o mercantilismo promovido por estes Estados europeus? Como entenderíamos o valor da vida, liberdade e propriedade, sem guerras e desavenças entre paradigmas humanos diferentes? Como iríamos valorizar o indivíduo, sem uma mudança no paradigma intelectual?

O fato é que os governos, todos eles, são fruto direto de nossa percepção da vida corrente. A Inglaterra fez suas revoluções, os países europeus fizeram suas revoluções, assim como os EUA, assim como outros países onde a ética liberal hoje é altamente respeitada. Portanto, as civilizações precisam passar por experiências para alcançar o "nível suíço", digamos assim. Abolir o Estado é impedir que este processo educativo das sociedades prossiga! E impedir a construção de uma percepção construída ao longo de gerações. D. Friedman é um não científico que pretende expor verdades imanentes. Portanto, indutivas. Mas indução não é ciência.


3. O Perigo da Fé no anúncio de "verdades"

 
Sobre a diferença entre dogma e realidade, escrevi a algum tempo um artigo sobre, demonstrando a diferença básica entre o dogmatismo do racionalismo francês e o pragmatismo do empirismo inglês.
 
Karl Popper, em sua obra “Lógica do Método Científico”, nos convida a perceber o problema das ditas “verdades científicas”. Para que uma hipótese seja boa é necessário que resista ao máximo possível as tentativas de falsifica-la. Neste sentido, não importa os exemplos que confirmem a teoria, mas aqueles onde a teoria é confrontada e falseada.

Trata-se do princípio do falsificacionismo. Para Popper, se um novo exemplo contradiz a hipótese original, esta hipótese não é mais válida, devendo-se partir para outra hipótese já assumindo aquele exemplo contraditório anteriormente apresentado.

Outro problema é o da demarcação. Uma teoria científica deve ser testada para que seja considerada, de fato, uma teoria científica. Se não é falsificável, não é científica. Já para os positivistas, uma hipótese é verdadeira se puder ser provada e verificada experimentalmente. Contudo, se a segunda demarcação for válida, então o marxismo, a psicanálise e a astrologia são ciências. O que, para Popper, não é verdade, considerando-as pseudociências. A indução não serve à ciência.

Para Thomas Kuhn, o cientista não é imparcial e objetivo, mas sempre parcial e subjetivo. Não há comunicação entre os paradigmas e nada nos garante que o presente paradigma seja verdadeiro. A ciência é uma série de rupturas entre paradigmas.

Uma relação de causas é um produto sistemático do hábito. Já dizia Hume: É pelo hábito que acreditamos numa relação. E este hábito é derivado unicamente da imaginação, não da razão, devido ao problema da indução. A observação de um número finito de casos não nos permite inferir numa conclusão geral necessária.

Que garantia tem de que o sol nascerá amanhã? Apenas o hábito, a imaginação. Não há nenhuma relação racional no resultado final. O sol pode, simplesmente, não nascer amanhã. Você pode morrer, a Terra pode desaparecer, o Sol pode desaparecer, uma nuvem de fumaça espessa pode tomar toda a terra e impedir que a luz do sol infunda no planeta. Enfim, há diversas possibilidades diferentes que podem acontecer racionalmente, impedindo que nossa hipótese original seja validada. A indução, portanto, é um exercício de crença.


 REVISÃO CONCEITUAL


A ética liberal, que é a ideia de que nenhum homem quer ser morto, ou perder sua liberdade individual ou de ser impedido de ter sua propriedade, surgiu em meados do século XVI, XVII, em meio às convulsões sociais da Europa. A ética liberal é fruto direto da mudança de paradigma na Europa, quando se saiu do teocentrismo medieval (Deus como centro do universo) e passou-se para o antropocentrismo moderno (o homem como centro do universo). Aliado a isso, os reinos buscavam novas rotas comerciais, o que favoreceu as grandes navegações. Surge aqui o mercantilismo, o pai do capitalismo moderno. Esse processo foi se intensificando, até culminar com as guerras civis inglesas e a revolução gloriosa, o grande marco para o liberalismo clássico. Surge aqui John Locke e Thomas Hobbes com as teorias do contrato social.

Teoria esta que diz, exatamente, que o homem é um ser livre, dotado de direitos individuais e que voluntariamente se une para formar governos. Surge aqui o conceito de individualismo, ligado ao de cidadania, conjuntamente à limitação do poder do Rei e, ao mesmo tempo, o sistema burguês (que é o sistema que todos aqui defendem, de livre mercado). O liberalismo clássico é essencialmente uma relação de proporção entre as liberdades individuais e o estado como garantidor de tais liberdades. A ideia de “minarquia” é uma ideia razoavelmente recente, datada do século XIX para cá. Portanto, é posterior ao liberalismo clássico e tem uma postura mais dogmática, ou seja, mais racionalista, ao contrário do liberalismo que é mais empirista.

Portanto, ética liberal significa: processo produtivo liberal (capitalismo) e Estado liberal (limitado).


[Argumento ancap]:

O Estado é uma entidade coercitiva que impede a voluntariedade dos indivíduos e obriga a todos seguirem as mesmas regras. Por isso, já que detém o monopólio da justiça e segurança, é ineficiente. Já o mercado, por depender da relação de concorrência entre diferentes empresas, é mais eficiente, promovendo desta forma melhores serviços de justiça e segurança para o indivíduo.

RESPOSTA LIBERAL:

1.      A ideia de que o Estado é coercitivo não condiz com as clássicas tradições da Teoria Geral do Estado. Há pelo menos duas tradições de interpretação para o surgimento do Estado. A da sociedade natural (com quatro subdivisões) e a contratual (Hobbes, Locke e Rousseau). A sociedade natural diz que o Estado tem origem natural e não voluntária, e suas divisões são: a. origem familiar ou patriarcal; b. origem em atos de força; c. origem em causas econômicas ou patrimoniais; d. origem interna e espontânea da sociedade.

2.    Já a origem contratual tem três diferentes interpretações, sendo que o liberalismo parte de duas principais (Hobbes e Locke). A interpretação de Hobbes é que o homem é lobo do homem, portanto, seu caráter naturalmente destrutivo obriga que sejam formados contratos de autoridade estabelecendo, assim, um governo. Já Locke afirma que o homem não é nem bom e nem mau, mas racional. E por ser racional, ele se une voluntariamente uns com os outros para garantir a paz social, a propriedade privada e as liberdades individuais.

Portanto, afirmar que o Estado surge apenas da coerção é uma falácia da consequência e uma omissão de dados. Se o Estado tem origens naturais e voluntárias, então a formação do Estado é igualmente válida, tanto quanto qualquer outra ação humana. O estabelecimento de impostos, de leis, de regramentos dentro de um determinado território, é uma legítima ação voluntária dos indivíduos livres em comunhão com outros indivíduos livres. Para o liberal, somente a ação violenta é perniciosa. Mas todas as outras são legítimas.

[Argumento ancap]:

Pode ser que haja estados voluntários. Mas de todo modo, o mercado continua sempre mais eficiente do que o Estado. Logo, o correto é que o mercado não seja impedido de atuar pela atuação livre.

RESPOSTA LIBERAL:

Então o mercado (entidade amoral, sem ética) é garantia de prosperidade para todos? Quem disse isso? Em que lugar do mundo um mercado sem qualquer presença do Estado deu certo? Há algum exemplo empírico?

Concordo que o mercado seja eficiente. Afinal, o mercado é a ação de indivíduos no intuito de suprir suas necessidades. Por isso mesmo nós, liberais clássicos, entendemos que os Estados que existem no mundo já é o produto final da decisão do consumidor. Em toda a história do capitalismo (que é o que todos aqui defendem), houve a presença do Estado. Uma história que, como disse na introdução, nasce em conjunto. O capitalismo é um processo histórico tanto quanto o Estado liberal. Ambos são o que se pode conhecer por ética liberal (antropocêntrica). Portanto, defender o capitalismo SEM o Estado é mais ou menos como defender a Microsoft sem o Windows.

Peguemos o exemplo de Estados com altíssima liberdade individual, liberdade econômica, alto nível de educação do povo e de capacidade de ação. A Suíça, por exemplo, é uma clara representação do nível máximo que a ética liberal pode alcançar. E até hoje os suíços não aboliram o Estado. Afinal, sua teoria é mais racional do que a real decisão do mercado?

[Argumento ancap]

A Suíça não é uma minarquia de verdade. Eles sempre estão votando projetos de lei para aumentar o tamanho do Estado, sem falar que lá não existe livre concorrência em tudo e o serviço militar é obrigatório. Como isso pode representar o ápice da ética liberal?

RESPOSTA LIBERAL:

Como eu disse anteriormente, a ideia de “minarquia pura” é uma ideia recente, dogmática, e não condiz com o que os liberais clássicos desejavam. A ética liberal é uma relação proporcional entre a liberdade individual e social. O liberalismo clássico é essencialmente uma relação de proporção entre as liberdades individuais e o estado como garantidor de tais liberdades.

Na Suíça, o povo é livre na mesma proporção com que o Estado é controlado por este povo livre. Ou seja, todas as decisões do Estado passam pelo crivo dos indivíduos livres para decidir o melhor caminho. Com que autoridade qualquer um de nós neste debate pode interferir nas livres decisões de cidadãos suíços? Isso sim seria anti-liberal. Se o povo suíço, que é autônomo, que tem porte de armas garantido, que controla 100% o Estado, aceita viver sobre um regime de serviço militar obrigatório, qual é o problema?

O dogmatismo é mais intervencionista do que se pensa. No afã de tentar impor nossa visão ideal de mundo, nos esquecemos de que nosso ideal não é necessariamente o ideal dos outros. Logo, não temos autoridade nenhuma para dizer o que o povo suíço precisa ou não precisa. O que podemos fazer é analisar a proporção entre liberdade individual e Estado (social). E no caso suíço, há 100% de ética liberal. Portanto, de liberalismo clássico.

[Argumento ancap]

Mas no livre mercado sem Estado, a Suíça poderia estar muito melhor.

RESPOSTA LIBERAL:

Então tente convencê-los disso. Vá lá para a Suíça, crie um movimento anarco-capitalista e veja quantos irão aceitar sua tese de fim do Estado. Entre aquilo que você acha que é certo e aquilo que é real, há um abismo. E pelo o que sei ninguém reclama da qualidade de vida na Suíça. Logo, o “livre mercado sem Estado” não faz nenhuma falta lá.

[Argumento ancap]

As pessoas querem viver sem serem impedidas de acesso livre a recursos que garantam sua vida, liberdade e propriedade. Logo, o Estado tem de acabar.

RESPOSTA LIBERAL:

Querer viver plenamente livre, com direito à propriedade e em busca de sua felicidade é o que o liberalismo clássico defende faz uns 250 anos. E como demonstramos no exemplo da Suíça, temos alcançado um verdadeiro sucesso. Portanto, com base nestes resultados realistas, empíricos, o que te leva a crer que sem o Estado as coisas estariam melhores? Com base em que você afirma isso? Qual é sua plataforma de observação? Qual é sua população amostra?

[Argumento ancap]

Mas os Estados sempre tem a tendência de crescerem, enquanto que no ancapismo isso simplesmente não seria possível (devido à concorrência). Por conta disso, o sistema anarco-capitalista é mais eficiente.

RESPOSTA LIBERAL:

Esta é uma ideia completamente imaginária, sem qualquer relação com a realidade. Se o Estado é uma demanda social mesmo nas sociedades mais adiantadas, afirmar que o mercado (no qual já vivemos) iria impedir o surgimento do Estado é apenas uma crença irracional. Uma questão de fé. Mais ou menos como acreditar em Zeus. Você tem o direito de acreditar nisso, mas os fatos estão contra você.

O liberal clássico entende que o Estado é uma demanda do mercado. Portanto, defendemos já faz 250 anos o modelo de Estado liberal, no qual a função do governo é garantir os direitos individuais do homem. Tanto temos alcançado sucesso, que os direitos humanos tem se tornado padrão em todo o planeta. Hoje em dia os países que desrespeitam os direitos humanos são mal vistos pela grande mídia e pela população. Ora, isso é um avanço da ética liberal, do antropocentrismo moderno.

[Argumento ancap]

Mas o Estado é ineficiente em grande parte, pois não garante que irá permanecer limitado e não impede que bandeiras coletivistas surjam.

RESPOSTA LIBERAL:

Mas o que você denuncia é a lógica do livre mercado. Diferentes éticas tendem a surgir num mercado que demanda estas éticas. Contudo, se existe um objetivo em comum com grande número de pessoas, devem elas monitorar diuturnamente o que o Estado (instituições) aplica em detrimento dos valores da sociedade. Se a sociedade está compromissada com valores liberais clássicos, então o Estado deve atuar sob estes valores. Caso contrário, é livre mercado. Oferta e demanda. Em Human Action, Mises diz: “Por causa da paz doméstica o liberalismo visa a um governo democrático. Democracia não é, portanto, uma instituição revolucionária. Pelo contrário, ela é o próprio meio para evitar revoluções e guerras civis. Ela fornece um método para o ajuste pacífico do governo à vontade da maioria. [...] Se a maioria da nação está comprometida com princípios frágeis e prefere candidatos sem valor, não há outro remédio além de tentar mudar sua mente, expondo princípios mais razoáveis e recomendando homens melhores. Uma minoria nunca vai ganhar um sucesso duradouro por outros meios.”. Ele acrescenta ainda: “O Liberalismo entende que não pode manter-se contra a vontade da maioria”.

O mesmo tipo de problema que ocorre hoje ocorreria numa sociedade ancap. Até porque, a concorrência de agências privadas tornaria a ética liberal apenas mais um produto, e não o padrão esperado por todos. Se concordarmos que hoje, no mundo moderno, os agentes já são racionais e já buscam maximizar suas liberdades individuais, então suas decisões são mercadologicamente aceitáveis. Mesmo que sejam contrárias as vontades do liberal. (O que justifica o monopólio da justiça). Se na sociedade brasileira hoje já há uma tendência para o socialismo, para o coletivismo, imagine se o Brasil fosse HOJE ancap. Iriam sobrar agências privadas socialistas e faltariam agências liberais. Pura questão de demanda de mercado.


4. Conclusão: 

Este presente artigo é o terceiro, numa série de três até agora, onde apresento as contradições, paradoxos, falácias e erros acadêmicos da teoria "anarco-capitalismo", à luz do liberalismo clássico. O primeiro artigo, "Paradoxo Ancap" foi uma breve exposição do primeiro problema que o pretenso anarquista encontra: a natureza humana. Ela é boa, má, racional, irracional, ou o que? E o que esta natureza humana tem a ver com a organização social? A tese ancap leva ou não em conta a natureza humana? Se sim, de que forma? E se não, por qual motivo? 

Em seguida, no artigo "Paradoxo Ancap 2", apresentei com maior profundidade a estrutura civilizacional na qual o ser humano (cuja natureza é complexa e contraditória) se insere. Mostrei que a anarquia, seja ela qual for (inclusive a capitalista) nada mais é do que um conjunto de paradoxos insuperáveis que não condiz com a realidade. Na verdade, o anarquista não passa de um rebelde, que quer de algum modo viver uma utopia. Mas na verdade, o anarco-capitalismo é uma distopia do liberalismo clássico. Não obstante, é importante notar que tanto o anarquista, como o socialista ou comunista são derivados da tradição racionalista francesa, que por acreditar na razão pura, impõe a si mesmo um entendimento de mundo radical, maniqueísta e não acadêmico. 

Neste, em razão do grande número de informação que acumulei para apresentar no debate, tive a necessidade de registrar as conclusões do debate num longo e mais completo texto sobre o tema. Não importa a versão do anarco-capitalismo (se jusnaturalista ou consequencialista), em ambos os casos os paradoxos serão os mesmos. Em um mundo onde a ética liberal é tão atacada, onde o liberalismo clássico deixado de lado em sociedades menos desenvolvidas, chega a ser um crime intelectual permitir que uma ideologia tão perniciosa caminhe livremente entre as redes sociais sem qualquer contraditório. Há muitos e diferentes argumentos que podem (e devem) ser utilizados contra o anarco-capitalismo. Contudo, o meu objetivo sempre foi o de alertar os leigos e não tão leigos assim sobre esta ideologia perigosa para a liberdade. Em tempos de radicalismos, torna-se fácil um extremismo como o anarco-capitalismo tornar-se popular entre adolescentes e jovens em busca da verdade. Contudo, a verdade não reside na fé cega e irracional, mas na busca e constante investigação dos fatos. 

Faço meu papel "russelliano". Apresento os fatos, as contradições, os paradoxos e falácias e, com isso, espero que a reflexão seja provocada e a busca pela verdade seja impulsionada. Em tempos de embolia intelectual, torna-se fundamental uma remenda onde a livre circulação de ideias é um incentivo e não um impeditivo para o desenvolvimento do caráter humano. 



Em tempo, obrigado pela leitura. Os autores utilizados para confeccionar este texto são diversos, e muitos já foram citados ao longo do artigo. Mas a fim de indicar uma importante literatura para o desenvolvimento do leitor, deixo as seguintes dicas:

1. Primeiro e Segundo Tratado do Governo Civil - John Locke
2. Sobre a Tolerância - John Locke
3. Teoria dos Sentimentos Morais - Adam Smith
4. A Riqueza das Nações - Adam Smith
5. Tratado da Natureza Humana - David Hume
6. Investigação sobre o entendimento humano - David Hume
7. Princípios de Economia Política - John Stuart Mill
8. A Liberdade - John Stuart MIll
9. Utilitarismo - John Stuart Mill
10. Princípios da Filosofia do Direito - Georg. W. F. Hegel
11. Os Fundamentos da Liberdade - Friedrich Hayek
12. Capitalismo e Liberdade - Milton Friedman
13. A ética protestante - Max Weber.
14. Economia e Sociedade - Max Weber
15. Princípios de Economia - Alfred Marshall.

Sasha Lamounier
Um Liberal Clássico


Porto - Portugal -
22 de Julho de 2015