Capitalismo: uma invenção liberal clássica
Por
Sasha Lamounier
Este texto é produto de uma série de aferições confeccionadas por mim, Sasha Lamounier, no intento de demonstrar a linha cronológica que criaria o sistema que hoje conhecemos como capitalismo e livre mercado. O presente texto foi criado como plataforma para o debate do dia 19 de Julho de 2015, onde eu confrontei a tese anarco-capitalista com a visão liberal clássica do mercado, da sociedade e do Estado.
INTRODUÇÃO
Eu sou um liberal clássico. E como tal,
defendo que o mercado é eficiente. Defendo o livre mercado. Foi a minha
ideologia que criou o termo laissez-faire. Portanto, neste debate (liberais versus anarco-capitalistas) não há
ninguém que discorde que o mercado seja eficiente ou que existe a
auto-regulação. O que existe aqui é uma discordância quanto à existência ou não
do Estado.
Todos nós concordamos que o ser humano
busca potencializar sua felicidade. Isso não é nenhuma novidade. Contudo, há de
se fazer uma distinção. O entendimento de que o homem busca potencializar sua
felicidade (portanto, seu bem estar individual) é um entendimento recente, com
cerca de 250 anos de idade. Antes, a ideia padrão era de que o homem nascia
predestinado e sua função nesta vida não era a felicidade, mas sim a vontade de
Deus. Seja essa vontade qual for: matar, roubar, salvar, punir, converter etc.
Com o advento da burguesia e da reforma
protestante, começou a surgir na Europa renascentista uma nova perspectiva. Devido
ao comércio, antigas ideias oriundas da civilização Greco-romana começaram a
adentrar nos círculos teológicos da Igreja Católica com uma perspectiva mais
humanizada, que conflitava com a visão divina do homem. Pouco a pouco, o
teocentrismo (Deus como centro do universo) da Idade Média começou a dar lugar
ao antropocentrismo (o homem como centro do universo). Surge Martinho Lutero e
o luteranismo, surge João Calvino e o calvinismo e, finalmente, o anglicanismo
de Henrique VIII.
Diversos motivos levam a ética liberal a
surgir como “produto a ser vendido”, primeiro, na Inglaterra. O país foi um dos
principais jogadores na era mercantilista, que, por sinal, teve seu apogeu
durante as eras Tudor e Stuart. Não coincidentemente, Henrique VIII era um
Tudor. Durante todo o processo mercantilista, os centros urbanos foram ganhando
cada vez maior importância, devido à oportunidade de vida impulsionada pelos
portos e pelas navegações. A agitação política na Inglaterra, entre os
protestantes e os católicos, gerou o que viria a ser as duas Guerras Civis
inglesas, cujo desfecho “glorioso” selaria definitivamente o modelo ideal de
uma nova política: o poder descentralizado. John Locke surge neste contexto,
apresentando no Dois Tratados do Governo e Da Tolerância, a consistente ética
liberal que impulsionaria os movimentos posteriores.Surge a ideia de que o homem possui direitos individuais, tais como a vida, liberdade e propriedade e estes devem ser respeitados.
Locke influenciou intelectuais na
França, entre eles Voltaire. E este, por sua vez, influenciou Adam Smith, que
através de seus estudos do comércio e da geração de riqueza, aliaria os
conceitos de liberdade apreendidos de Voltaire e Locke para, assim, dar forma
ao que viria a ser a ciência econômica. Smith, junto de Francis Bacon e David Hume,
fazia parte da tradição empírica do liberalismo. Aquela na qual nos baseamos em
fatos para compreender a realidade (realismo).
Dito isso, surge uma ruptura progressiva
do antigo sistema moral (teocrático) para o novo sistema moral (liberal). A
ideia que temos de que o homem quer, apenas, viver sua vida individual
pacificamente sem ser importunado por outras pessoas nasce aqui, nesta ruptura.
Portanto, surge do liberalismo clássico. Junto desta ideia, surge o moderno
capitalismo. Foi no século XVIII que a Inglaterra tornou-se pioneira da
Revolução Industrial, muito devido ao comércio e ao mercado de tecidos inglês
(que de artesanal passou para industrial, visando atender um mercado cada vez
maior).
1. Livre Mercado e Estado Liberal: uma única ética
Traduzindo isso para a linguagem
econômica, percebemos um claro padrão. Primeiro, o capitalismo como conhecemos
não surgiu do nada. Ele é fruto de um longo processo cultural, social,
político, religioso e prático que foi se desenvolvendo ao longo do século XV e
XVII. Ao mesmo tempo em que o capitalismo surgia como sistema, o Estado
teocrático (absoluto) sofria imensas mudanças, dando lugar ao Estado liberal (de poder descentralizado).
Se for verdade (e todos concordam neste
aspecto) que o mercado é eficiente, então todos concordam que os mercados
atingem um ponto de equilíbrio entre a oferta e a demanda. A partir da análise
da história, fica evidente que ao passo que surge uma demanda por maior
liberdade individual, a oferta de um Estado descentralizado é cada vez maior.
Isso significa que há uma evidente relação entre as liberdades individuais e o
Estado (não de sua ausência, mas da qualidade de sua presença). Por isso a ética liberal nunca foi e não é anárquica, pois para que exista o livre mercado, a ética liberal demanda sua própria existência. E isso só pode ser atingindo via Estado.
O produto “ética liberal”, produzido
durante o contexto histórico do século XV, XVI e XVII, teve seus pioneiros:
Thomas Hobbes, John Locke, Voltaire, Adam Smith, David Hume, David Ricardo,
Montesquieu e assim por diante. Portanto, frisa-se: a ética liberal é produto do empirismo inglês. Dogmatizar a ética liberal é fugir de sua origem e destoar o próprio conceito.
Este novo produto surgiu para atender
uma demanda criada naturalmente no processo histórico europeu (Hegel). Hoje em dia,
passados 200 anos, a Europa viveu diversas diferentes situações que demonstram
a tentativa constante destes países e suas culturas encontrarem o ponto de
equilíbrio do mercado “ética liberal”. Hoje podemos dizer que o país que
atingiu este ponto de equilíbrio (portanto, a eficiência de mercado do produto
ética liberal) é a Suíça. O país tem um estado proporcional às liberdades
individuais e vice-versa. O povo tem exatamente aquilo que demanda e o Estado
oferta exatamente aquilo que é procurado. Sim, os mercados são eficientes e no
que tange o produto “ética liberal”, a Suíça é o claro exemplo de equilíbrio.
A ética liberal significa liberdade
econômica e civil. O produto consequente desta ética é o Estado liberal.
Assumindo que os mercados se equilibram, pois a humanidade é racional e irá
maximizar suas necessidades, é empiricamente demonstrável que o entendimento de
que a busca da felicidade é o objetivo da vida humana, diferentes formas de
organização social surgem. Se o território é um recurso escasso e se a
liberdade política é parte da ética liberal, então fica óbvio que os países com
acesso a ética liberal tendem, cada vez mais, equilibrar a oferta de ética
liberal com a procura por ela.
Tendo como base estes fatos, podemos
analisar outros países. Por exemplo, o Brasil. Qual é a oferta de ética liberal
no Brasil em comparação aos EUA, que nasceu fundado na ética liberal? O Brasil
nasceu fundado na ética católica, ainda remanescente do teocentrismo. Portanto,
nosso problema é que ainda vivemos sobre um produto antigo, defasado. O novo
produto que a humanidade tem endossado há 250 anos (ética liberal) ainda não é
ofertado a contento na sociedade brasileira. E também não é ofertado a contento em outras tantas nações. Há tentativas, e isso cria
pequenas mudanças progressivas.
Por exemplo, a constituição de 1824 e o
Império de Pedro II foi uma aplicação da ética liberal no contexto brasileiro.
Mas como a procura pela ética liberal era diminuta e a oferta era muita, o
Império não conseguiu se sustentar, pois vendia caro um produto (liberdade)
pouco procurado (país conservador, religioso ao extremo, escravagista). Como
toda empresa, sem capacidade de se manter, faliu, dando lugar à concorrência
republicana. Concorrência essa que já nascia com os piores vícios da sociedade
brasileira, ainda remanescente da velha ética teocrática.
O capitalismo é um sistema econômico
liberal por excelência. Surgiu junto das convulsões políticas e sociais de sua
época, surgiu junto do Estado limitado inglês. Prova disso é a origem da
Revolução Industrial e o surgimento do sistema financeiro dos EUA (criado por
Alexander Hamilton, primeiro secretário dos EUA).
A anarquia (ausência de governo) não é
uma demanda social. Na verdade, defender o capitalismo sem o Estado liberal é
como defender a Microsoft, mas ser contra o Windows. O Estado liberal é produto
da auto-regulação social. Ser contra o modelo de estado liberal, aquele que nasceu junto do
capitalismo, é ser contra as decisões do mercado e, por tabela, ser contra o capitalismo.
Prova disso é que o mercado equilibrado da ética liberal, a Suíça, não aboliu o
Estado. E aquele povo é um dos mais livres que a história da humanidade já teve
notícia.
A Suíça é tão estável, que as principais
instituições internacionais de garantia da ÉTICA LIBERAL estão situadas lá:
Organização das Nações Unidas (ONU), Organização Mundial da Saúde (OMS),
Organização Mundial do Comércio (OMC), Comitê Internacional da Cruz Vermelha
(CICR), Organização Europeia para a Investigação Nuclear (CERN), Organização
Internacional do Trabalho (OIT) etc.
Portanto, o Estado liberal
(constitucional, com limitação de poder, tripartição, direitos civis
garantidos, direitos humanos, respeito à vida, liberdade e propriedade) é uma
CONSEQUÊNCIA direta do advento do capitalismo. Novamente, basta recordar a
história. O capitalismo como sistema surgiu ao mesmo tempo em que o antigo
regime era questionado e nascia o novo regime. Logo, o novo regime É o regime
capitalista.
Além disso, se os agentes são racionais,
por óbvio o que temos na humanidade atualmente é produto das decisões destes
seres humanos racionais. Quem é contra estas decisões é, na verdade,
intervencionista. O ancap (anarquista de mercado) é um intervencionista na pura
decisão do mercado: Estados liberais.
2. O erro do consequencialismo anárquico;
David Friedman, em sua obra “Engrenagens
da Liberdade”, parte de uma série de pressupostos para defender que o mercado
tem melhores soluções do que o Estado e que este não é necessário. Para chegar
nesta conclusão, ele parte da premissa de que o mercado é eficiente, pois
devido à concorrência, os serviços são mais bem executados e o bem público
(Estado) é inferior ao bem privado (empresas).
Em suma, pode-se resumir o argumento
consequencialista no seguinte silogismo: “O
mercado é eficiente, o Estado é ineficiente. Portanto, acabemos com o Estado”.
A amostra de David Friedman é a
sociedade norte-americana moderna. Portanto, sua análise é baseada numa
realidade pautada na ética liberal. As pessoas sabem o que é direito à vida, a
liberdade e a propriedade. Foram educadas desde sempre assim. Sabem o valor do
trabalho, da geração de riqueza, dos contratos e foram educadas para isso desde
sempre. Contudo, esta amostra é pertencente a um universo onde o Estado existe.
Quando David Friedman tira o Estado da
conta, ele tira o governo como instituição pública e transfere os mesmos
preceitos para as instituições privadas. Mas ele não abole o governo, pois reconhece (intuitivamente) que esta instituição é natural. No fundo, ele defende o que já existe,
mas promovendo concorrência entre agências de segurança e justiça privadas (os governos privados). Pois é
na concorrência, diz ele, que o serviço é mais bem entregue. Uma vez que o
Estado tem o monopólio dos serviços de segurança e justiça, estes não mais
serão tão eficientes como poderiam ser.
Como liberal clássico, concordamos que o
mercado é eficiente. E mais ainda, concordamos que agências privadas de
segurança e justiça podem e devem atuar na sociedade, de modo a maximizar os
ganhos do indivíduo em detrimento da preservação de seus direitos. Mas, porque
então deveria o Estado continuar existindo? Após tudo o que já foi dito, o leitor sagaz saberá a resposta. Mas vamos investigar mesmo assim.
A ética liberal é uma construção social,
histórica e cultural. Portanto é uma evolução da civilização. A eficiência do
mercado que tanto David Friedman como os liberais clássicos defendem, é produto
direto do desenvolvimento de uma ética liberal. E isso quer dizer que a ética
liberal é um produto desenvolvido por gerações, pelo tempo, pela experiência do
erro e acerto. Uma ética construída dentro de uma jurisdição pública (os atuais Estados).
A constituição é uma prerrogativa para a
preservação da estabilidade e o legado de longo termo essencial para a
continuação da sociedade civilizada. Sua função não é garantir o poder, mas
manter livre o espaço onde não há poder algum. O governo é, em último caso, o
conjunto de lições que aprendemos com nossas próprias contradições em nosso
próprio caráter.
Os argumentos de David Friedman são
eivados de uma grande fé que a humanidade viverá eternamente sob a ética
liberal. Contudo, nem sempre foi assim. A ética liberal nasceu num contexto
histórico, derivado de uma mudança de paradigma na Europa renascentista. E mais ainda, o mundo moderno não vive inteiramente sobre a ética liberal. Portanto, crer que sem o Estado esta ética seria o "produto natural" da sociedade, é um tremendo erro lógico. O que
o leva a crer que a ética liberal sobreviverá sem um espaço onde as
contradições humanas sejam conflitadas?
A existência do governo é, mais do que uma questão de eficiência, uma necessidade educativa. Como alcançaríamos a ética liberal,
sem antes passar por todas as experiências possíveis de um Estado teocrático?
Como chegaríamos ao livre mercado, sem o mercantilismo promovido por estes
Estados europeus? Como entenderíamos o valor da vida, liberdade e propriedade,
sem guerras e desavenças entre paradigmas humanos diferentes? Como iríamos valorizar o indivíduo, sem uma mudança no paradigma intelectual?
O fato é que os governos, todos eles,
são fruto direto de nossa percepção da vida corrente. A Inglaterra fez suas revoluções, os países europeus fizeram suas revoluções, assim como os EUA, assim como outros países onde a ética liberal hoje é altamente respeitada. Portanto, as civilizações precisam passar por experiências para alcançar o "nível suíço", digamos assim. Abolir o Estado é impedir que este processo educativo das sociedades prossiga! E impedir a construção de uma percepção construída
ao longo de gerações. D. Friedman é um não científico que
pretende expor verdades imanentes. Portanto, indutivas. Mas indução não é ciência.
3. O Perigo da Fé no anúncio de "verdades"
Sobre a diferença entre dogma e realidade, escrevi a algum tempo um artigo sobre, demonstrando a diferença básica entre o dogmatismo do racionalismo francês e o pragmatismo do empirismo inglês.
Karl Popper, em sua obra “Lógica do
Método Científico”, nos convida a perceber o problema das ditas “verdades
científicas”. Para que uma hipótese seja boa é necessário que resista ao máximo
possível as tentativas de falsifica-la. Neste sentido, não importa os exemplos
que confirmem a teoria, mas aqueles onde a teoria é confrontada e falseada.
Trata-se do princípio do
falsificacionismo. Para Popper, se um novo exemplo contradiz a hipótese
original, esta hipótese não é mais válida, devendo-se partir para outra
hipótese já assumindo aquele exemplo contraditório anteriormente apresentado.
Outro problema é o da demarcação. Uma
teoria científica deve ser testada para que seja considerada, de fato, uma
teoria científica. Se não é falsificável, não é científica. Já para os
positivistas, uma hipótese é verdadeira se puder ser provada e verificada
experimentalmente. Contudo, se a segunda demarcação for válida, então o
marxismo, a psicanálise e a astrologia são ciências. O que, para Popper, não é
verdade, considerando-as pseudociências. A indução não serve à ciência.
Para Thomas Kuhn, o cientista não é
imparcial e objetivo, mas sempre parcial e subjetivo. Não há comunicação entre
os paradigmas e nada nos garante que o presente paradigma seja verdadeiro. A
ciência é uma série de rupturas entre paradigmas.
Uma relação de causas é um produto
sistemático do hábito. Já dizia Hume: É
pelo hábito que acreditamos numa relação. E este hábito é derivado
unicamente da imaginação, não da razão, devido ao problema da indução. A
observação de um número finito de casos não nos permite inferir numa conclusão
geral necessária.
Que garantia tem de que o sol nascerá
amanhã? Apenas o hábito, a imaginação. Não há nenhuma relação racional no
resultado final. O sol pode, simplesmente, não nascer amanhã. Você pode morrer,
a Terra pode desaparecer, o Sol pode desaparecer, uma nuvem de fumaça espessa
pode tomar toda a terra e impedir que a luz do sol infunda no planeta. Enfim,
há diversas possibilidades diferentes que podem acontecer racionalmente,
impedindo que nossa hipótese original seja validada. A indução, portanto, é um
exercício de crença.
REVISÃO CONCEITUAL
A ética liberal, que é a ideia de que
nenhum homem quer ser morto, ou perder sua liberdade individual ou de ser
impedido de ter sua propriedade, surgiu em meados do século XVI, XVII, em meio
às convulsões sociais da Europa. A ética liberal é fruto direto da mudança de
paradigma na Europa, quando se saiu do teocentrismo medieval (Deus como centro
do universo) e passou-se para o antropocentrismo moderno (o homem como centro
do universo). Aliado a isso, os reinos buscavam novas rotas comerciais, o que
favoreceu as grandes navegações. Surge aqui o mercantilismo, o pai do
capitalismo moderno. Esse processo foi se intensificando, até culminar com as
guerras civis inglesas e a revolução gloriosa, o grande marco para o
liberalismo clássico. Surge aqui John Locke e Thomas Hobbes com as teorias do
contrato social.
Teoria esta que diz, exatamente, que o
homem é um ser livre, dotado de direitos individuais e que voluntariamente se
une para formar governos. Surge aqui o conceito de individualismo, ligado ao de
cidadania, conjuntamente à limitação do poder do Rei e, ao mesmo tempo, o
sistema burguês (que é o sistema que todos aqui defendem, de livre mercado). O liberalismo clássico é essencialmente uma relação de proporção entre as
liberdades individuais e o estado como garantidor de tais liberdades. A
ideia de “minarquia” é uma ideia razoavelmente recente, datada do século XIX
para cá. Portanto, é posterior ao liberalismo clássico e tem uma postura mais
dogmática, ou seja, mais racionalista, ao contrário do liberalismo que é mais
empirista.
Portanto, ética liberal significa: processo produtivo liberal (capitalismo) e
Estado liberal (limitado).
[Argumento
ancap]:
O Estado é uma entidade coercitiva que
impede a voluntariedade dos indivíduos e obriga a todos seguirem as mesmas
regras. Por isso, já que detém o monopólio da justiça e segurança, é
ineficiente. Já o mercado, por depender da relação de concorrência entre diferentes
empresas, é mais eficiente, promovendo desta forma melhores serviços de justiça
e segurança para o indivíduo.
RESPOSTA LIBERAL:
1.
A
ideia de que o Estado é coercitivo não condiz com as clássicas tradições da
Teoria Geral do Estado. Há pelo menos duas tradições de interpretação para o
surgimento do Estado. A da sociedade natural (com quatro subdivisões) e a
contratual (Hobbes, Locke e Rousseau). A sociedade natural diz que o Estado tem
origem natural e não voluntária, e suas divisões são: a. origem familiar ou
patriarcal; b. origem em atos de força; c. origem em causas econômicas ou
patrimoniais; d. origem interna e espontânea da sociedade.
2. Já
a origem contratual tem três diferentes interpretações, sendo que o liberalismo
parte de duas principais (Hobbes e Locke). A interpretação de Hobbes é que o
homem é lobo do homem, portanto, seu caráter naturalmente destrutivo obriga que
sejam formados contratos de autoridade estabelecendo, assim, um governo. Já
Locke afirma que o homem não é nem bom e nem mau, mas racional. E por ser
racional, ele se une voluntariamente uns com os outros para garantir a paz
social, a propriedade privada e as liberdades individuais.
Portanto, afirmar que o Estado surge
apenas da coerção é uma falácia da consequência e uma omissão de dados. Se o
Estado tem origens naturais e voluntárias, então a formação do Estado é
igualmente válida, tanto quanto qualquer outra ação humana. O estabelecimento
de impostos, de leis, de regramentos dentro de um determinado território, é uma
legítima ação voluntária dos indivíduos livres em comunhão com outros
indivíduos livres. Para o liberal, somente a ação violenta é perniciosa. Mas
todas as outras são legítimas.
[Argumento
ancap]:
Pode ser que haja estados voluntários.
Mas de todo modo, o mercado continua sempre mais eficiente do que o Estado.
Logo, o correto é que o mercado não seja impedido de atuar pela atuação livre.
RESPOSTA LIBERAL:
Então o mercado (entidade amoral, sem
ética) é garantia de prosperidade para todos? Quem disse isso? Em que lugar do
mundo um mercado sem qualquer presença do Estado deu certo? Há algum exemplo
empírico?
Concordo que o mercado seja eficiente.
Afinal, o mercado é a ação de indivíduos no intuito de suprir suas
necessidades. Por isso mesmo nós, liberais clássicos, entendemos que os Estados
que existem no mundo já é o produto final da decisão do consumidor. Em toda a
história do capitalismo (que é o que todos aqui defendem), houve a presença do
Estado. Uma história que, como disse na introdução, nasce em conjunto. O
capitalismo é um processo histórico tanto quanto o Estado liberal. Ambos são o
que se pode conhecer por ética liberal (antropocêntrica). Portanto, defender o
capitalismo SEM o Estado é mais ou menos como defender a Microsoft sem o
Windows.
Peguemos o exemplo de Estados com
altíssima liberdade individual, liberdade econômica, alto nível de educação do
povo e de capacidade de ação. A Suíça, por exemplo, é uma clara representação
do nível máximo que a ética liberal pode alcançar. E até hoje os suíços não
aboliram o Estado. Afinal, sua teoria é mais racional do que a real decisão do
mercado?
[Argumento
ancap]
A Suíça não é uma minarquia de verdade.
Eles sempre estão votando projetos de lei para aumentar o tamanho do Estado,
sem falar que lá não existe livre concorrência em tudo e o serviço militar é
obrigatório. Como isso pode representar o ápice da ética liberal?
RESPOSTA LIBERAL:
Como eu disse anteriormente, a ideia de
“minarquia pura” é uma ideia recente, dogmática, e não condiz com o que os
liberais clássicos desejavam. A ética liberal é uma relação proporcional entre
a liberdade individual e social. O liberalismo clássico é essencialmente uma
relação de proporção entre as liberdades individuais e o estado como garantidor
de tais liberdades.
Na Suíça, o povo é livre na mesma
proporção com que o Estado é controlado por este povo livre. Ou seja, todas as
decisões do Estado passam pelo crivo dos indivíduos livres para decidir o
melhor caminho. Com que autoridade qualquer um de nós neste debate pode
interferir nas livres decisões de cidadãos suíços? Isso sim seria anti-liberal.
Se o povo suíço, que é autônomo, que tem porte de armas garantido, que controla
100% o Estado, aceita viver sobre um regime de serviço militar obrigatório,
qual é o problema?
O dogmatismo é mais intervencionista do
que se pensa. No afã de tentar impor nossa visão ideal de mundo, nos esquecemos
de que nosso ideal não é necessariamente o ideal dos outros. Logo, não temos
autoridade nenhuma para dizer o que o povo suíço precisa ou não precisa. O que
podemos fazer é analisar a proporção entre liberdade individual e Estado
(social). E no caso suíço, há 100% de ética liberal. Portanto, de liberalismo
clássico.
[Argumento
ancap]
Mas no livre mercado sem Estado, a Suíça
poderia estar muito melhor.
RESPOSTA LIBERAL:
Então tente convencê-los disso. Vá lá
para a Suíça, crie um movimento anarco-capitalista e veja quantos irão aceitar
sua tese de fim do Estado. Entre aquilo que você acha que é certo e aquilo que
é real, há um abismo. E pelo o que sei ninguém reclama da qualidade de vida na
Suíça. Logo, o “livre mercado sem Estado” não faz nenhuma falta lá.
[Argumento
ancap]
As pessoas querem viver sem serem
impedidas de acesso livre a recursos que garantam sua vida, liberdade e
propriedade. Logo, o Estado tem de acabar.
RESPOSTA LIBERAL:
Querer viver plenamente livre, com
direito à propriedade e em busca de sua felicidade é o que o liberalismo
clássico defende faz uns 250 anos. E como demonstramos no exemplo da Suíça,
temos alcançado um verdadeiro sucesso. Portanto, com base nestes resultados
realistas, empíricos, o que te leva a crer que sem o Estado as coisas estariam
melhores? Com base em que você afirma isso? Qual é sua plataforma de
observação? Qual é sua população amostra?
[Argumento
ancap]
Mas os Estados sempre tem a tendência de
crescerem, enquanto que no ancapismo isso simplesmente não seria possível
(devido à concorrência). Por conta disso, o sistema anarco-capitalista é mais
eficiente.
RESPOSTA LIBERAL:
Esta é uma ideia completamente
imaginária, sem qualquer relação com a realidade. Se o Estado é uma demanda
social mesmo nas sociedades mais adiantadas, afirmar que o mercado (no qual já
vivemos) iria impedir o surgimento do Estado é apenas uma crença irracional.
Uma questão de fé. Mais ou menos como acreditar em Zeus. Você tem o direito de
acreditar nisso, mas os fatos estão contra você.
O liberal clássico entende que o Estado
é uma demanda do mercado. Portanto, defendemos já faz 250 anos o modelo de
Estado liberal, no qual a função do governo é garantir os direitos individuais
do homem. Tanto temos alcançado sucesso, que os direitos humanos tem se tornado
padrão em todo o planeta. Hoje em dia os países que desrespeitam os direitos
humanos são mal vistos pela grande mídia e pela população. Ora, isso é um
avanço da ética liberal, do antropocentrismo moderno.
[Argumento
ancap]
Mas o Estado é ineficiente em grande
parte, pois não garante que irá permanecer limitado e não impede que bandeiras
coletivistas surjam.
RESPOSTA LIBERAL:
Mas o que
você denuncia é a lógica do livre mercado. Diferentes éticas tendem a surgir
num mercado que demanda estas éticas. Contudo, se existe um objetivo em comum
com grande número de pessoas, devem elas monitorar diuturnamente o que o Estado
(instituições) aplica em detrimento dos valores da sociedade. Se a sociedade
está compromissada com valores liberais clássicos, então o Estado deve atuar
sob estes valores. Caso contrário, é livre mercado. Oferta e demanda. Em Human Action, Mises diz: “Por causa da paz doméstica o
liberalismo visa a um governo democrático. Democracia não é, portanto, uma
instituição revolucionária. Pelo contrário, ela é o próprio meio para evitar
revoluções e guerras civis. Ela fornece um método para o ajuste pacífico do
governo à vontade da maioria. [...] Se a maioria da nação está comprometida com
princípios frágeis e prefere candidatos sem valor, não há outro remédio além de
tentar mudar sua mente, expondo princípios mais razoáveis e recomendando homens
melhores. Uma minoria nunca vai ganhar um sucesso duradouro por outros meios.”.
Ele acrescenta ainda: “O Liberalismo
entende que não pode manter-se contra a vontade da maioria”.
O mesmo tipo de problema que ocorre hoje
ocorreria numa sociedade ancap. Até porque, a concorrência de agências privadas
tornaria a ética liberal apenas mais um produto, e não o padrão esperado por
todos. Se concordarmos que hoje, no mundo moderno, os agentes já são racionais
e já buscam maximizar suas liberdades individuais, então suas decisões são
mercadologicamente aceitáveis. Mesmo que sejam contrárias as vontades do
liberal. (O que justifica o monopólio da justiça). Se na sociedade brasileira
hoje já há uma tendência para o socialismo, para o coletivismo, imagine se o
Brasil fosse HOJE ancap. Iriam sobrar agências privadas socialistas e faltariam
agências liberais. Pura questão de demanda de mercado.
4. Conclusão:
Este presente artigo é o terceiro, numa série de três até agora, onde apresento as contradições, paradoxos, falácias e erros acadêmicos da teoria "anarco-capitalismo", à luz do liberalismo clássico. O primeiro artigo, "Paradoxo Ancap" foi uma breve exposição do primeiro problema que o pretenso anarquista encontra: a natureza humana. Ela é boa, má, racional, irracional, ou o que? E o que esta natureza humana tem a ver com a organização social? A tese ancap leva ou não em conta a natureza humana? Se sim, de que forma? E se não, por qual motivo?
Em seguida, no artigo "Paradoxo Ancap 2", apresentei com maior profundidade a estrutura civilizacional na qual o ser humano (cuja natureza é complexa e contraditória) se insere. Mostrei que a anarquia, seja ela qual for (inclusive a capitalista) nada mais é do que um conjunto de paradoxos insuperáveis que não condiz com a realidade. Na verdade, o anarquista não passa de um rebelde, que quer de algum modo viver uma utopia. Mas na verdade, o anarco-capitalismo é uma distopia do liberalismo clássico. Não obstante, é importante notar que tanto o anarquista, como o socialista ou comunista são derivados da tradição racionalista francesa, que por acreditar na razão pura, impõe a si mesmo um entendimento de mundo radical, maniqueísta e não acadêmico.
Neste, em razão do grande número de informação que acumulei para apresentar no debate, tive a necessidade de registrar as conclusões do debate num longo e mais completo texto sobre o tema. Não importa a versão do anarco-capitalismo (se jusnaturalista ou consequencialista), em ambos os casos os paradoxos serão os mesmos. Em um mundo onde a ética liberal é tão atacada, onde o liberalismo clássico deixado de lado em sociedades menos desenvolvidas, chega a ser um crime intelectual permitir que uma ideologia tão perniciosa caminhe livremente entre as redes sociais sem qualquer contraditório. Há muitos e diferentes argumentos que podem (e devem) ser utilizados contra o anarco-capitalismo. Contudo, o meu objetivo sempre foi o de alertar os leigos e não tão leigos assim sobre esta ideologia perigosa para a liberdade. Em tempos de radicalismos, torna-se fácil um extremismo como o anarco-capitalismo tornar-se popular entre adolescentes e jovens em busca da verdade. Contudo, a verdade não reside na fé cega e irracional, mas na busca e constante investigação dos fatos.
Faço meu papel "russelliano". Apresento os fatos, as contradições, os
paradoxos e falácias e, com isso, espero que a reflexão seja provocada e
a busca pela verdade seja impulsionada. Em tempos de embolia
intelectual, torna-se fundamental uma remenda onde a livre circulação de
ideias é um incentivo e não um impeditivo para o desenvolvimento do
caráter humano.
Em tempo, obrigado pela leitura. Os autores utilizados para confeccionar este texto são diversos, e muitos já foram citados ao longo do artigo. Mas a fim de indicar uma importante literatura para o desenvolvimento do leitor, deixo as seguintes dicas:
1. Primeiro e Segundo Tratado do Governo Civil - John Locke
2. Sobre a Tolerância - John Locke
3. Teoria dos Sentimentos Morais - Adam Smith
4. A Riqueza das Nações - Adam Smith
5. Tratado da Natureza Humana - David Hume
6. Investigação sobre o entendimento humano - David Hume
7. Princípios de Economia Política - John Stuart Mill
8. A Liberdade - John Stuart MIll
9. Utilitarismo - John Stuart Mill
10. Princípios da Filosofia do Direito - Georg. W. F. Hegel
11. Os Fundamentos da Liberdade - Friedrich Hayek
12. Capitalismo e Liberdade - Milton Friedman
13. A ética protestante - Max Weber.
14. Economia e Sociedade - Max Weber
15. Princípios de Economia - Alfred Marshall.
Sasha Lamounier
Um Liberal Clássico
Porto - Portugal -
22 de Julho de 2015