24/02/2017

Liberalismo Clássico e Conservadorismo



Liberalismo Clássico e Conservadorismo

Antologia de uma guerra conceitual 


Conservador é liberal clássico? Existe conservador liberal? O que é conservadorismo? O que é liberalismo clássico?

Ainda hoje, muitos confundem o liberalismo clássico com o conservadorismo. Há ainda aqueles que, pela defesa de uma liberdade econômica em paralelo a defesa de um conservadorismo social, se autodenominam “conservadores liberais”. Tal confusão é fruto de um conjunto de desinformações promovidos por conservadores ao longo da história, no intento de preservar interesses econômicos específicos. Conservadores não tem um projeto econômico per si, mas apenas um projeto social. Logo, precisam se apropriar de algum projeto econômico.

O liberalismo, nos idos da revolução industrial, pareceu o caminho natural para muitos conservadores. O liberalismo clássico, sem a capacidade de seus partidários sustentar ideologicamente seus fundamentos, acabou se dissolvendo entre socialistas, anarquistas e conservadores. A partir desta dissolução, teses liberais ficaram separadas e até hoje continuam em franca dissonância.

Visando esclarecer esta confusão, ao mesmo tempo em que lanço uma reflexão crítica a cerca do papel do liberalismo diante do levante conservador no mundo moderno, escrevi um breve resumo do processo histórico que culminou com o atual conservadorismo e desenvolvi uma reflexão sobre a maneira de como o liberalismo deve atuar diante deste contexto.



BREVE HISTÓRIA DO CONSERVADORISMO MODERNO

Reforço que o que se segue é apenas um resumo, cujo intuito é demonstrar os principais eventos-chave do processo histórico.

Quando nos perguntamos o que é um conservador, nos perguntamos imediatamente o que ele quer conservar. E a resposta costuma ser: conservar os valores judaico-cristãos e o estado burguês.

Tal afirmativa superficial e simplista nos parece óbvia, mas esconde uma série de revisões históricas. Primeiro, de onde vem o conceito judaico-cristão deste conservador? Do catolicismo? Do protestantismo? Do judaísmo ortodoxo ou moderno? Que tipo de valores este conservador defende? Em segundo, pergunta-se: quais são os limites do estado burguês para este conservador? O que é um estado burguês?

Quando se fala em conservadorismo, estamos falando de um conjunto de pensamentos que promovem mudanças lentas e graduais, promovem a tradição e um conjunto de crenças e costumes coletivos compartilhados por um povo.

Portanto, temos diferentes tipos de conservadorismos em diferentes sociedades. É um erro admitir que o conservador brasileiro é igual ao americano ou ao inglês, pois cada sociedade possui um processo próprio de transformação, contradição e dialética que muda o entendimento a cerca “do que se quer conservar”.

O conservadorismo americano é muito ligado aos peregrinos calvinistas ingleses que colonizaram as treze colônias na América do Norte. Está ligado a teses como: predestinação, livre arbítrio, salvação pela fé, congregação da comunidade, terra prometida e assim por diante. Os calvinistas surgiram na Alemanha, se espalhando rapidamente por Polônia, Holanda, Dinamarca e outros países da região. Foram influenciados por Martinho Lutero e influenciaram a Igreja Anglicana fundada por Henrique VIII.


I.                   O PROCESSO INGLÊS e suas CONSEQUÊNCIAS

Para entender os peregrinos ingleses que colonizaram a América do Norte, temos de entender antes o conservadorismo britânico e seu desenvolvimento até os dias de hoje. Como este surgiu? Se voltarmos a Henrique VIII (1491-1547) e a criação da Igreja Anglicana, temos uma ruptura histórica de um Estado monárquico absoluto com o Papado. O monarca inglês tornou-se chefe da Igreja Anglicana, o que lhe dava maior autonomia política e religiosa frente ao catolicismo.

Apesar de suas intenções iniciais terem sido a manutenção do poder de sua família (os Tudor) e o desenvolvimento da Inglaterra, diversas razões levaram o Rei Henrique VIII a agir de forma bastante inovadora. Em todo caso, no afã de preservar o poder a qualquer custo, ele acabou sendo também bastante instável e autoritário, punindo com a morte diversos opositores e ex-esposas.

Henrique VIII casou-se, assim que assumiu o trono, com Catarina de Aragão, do reino católico da Espanha (naquele tempo, um poderoso reino). Catarina havia casado com seu irmão mais velho, Arthur, que morrera antes de assumir o trono. Para manter os laços com a Espanha, ele casou-se com a ex-cunhada. Mas por muito tempo, o casamento nunca deu filhos varões. Apenas uma filha, Mary Tudor, futura Rainha Maria I da Inglaterra. Desejando um herdeiro para o trono e não tendo interesse em sua esposa, Henrique VIII sempre teve muitas amantes. Uma delas era Maria Bolena, criada da rainha Catarina de Aragão. Maria Bolena seria a ponte para a verdadeira paixão do monarca. Através dela, Henrique conheceria e se apaixonaria por Ana Bolena, irmã de Maria, desejando assim o divórcio com Catarina para casar-se novamente. Este seria o grande estopim da ruptura.

O problema é que somente o Papa poderia anular o casamento entre Henrique e Catarina, neste momento, ambos católicos. Influenciado pela onda protestante na Europa, iniciada com Martinho Lutero em 1521 e com Calvino em 1534, Henrique resolve romper com a Igreja Católica e adotar os preceitos protestantes do calvinismo e luteranismo, criando assim a Igreja da Inglaterra (ou, Igreja Anglicana), onde ele seria o chefe. Assim, ele pode anular seu casamento com Catarina e formar laços com Ana Bolena, com quem teria uma filha chamada Elizabeth (futura Elizabeth I da Inglaterra).



(Cena da série "The Tudors", onde o personagem Thomas Cromwell explica a diferença entre a fé protestante e a fé católica a um criado. Representa a influência do calvinismo na corte de Henrique VIII)


A formação da Igreja Anglicana se deu também em 1534. Henrique VIII ainda se casaria outras quatro vezes depois de Ana Bolena, sempre em busca de herdeiros homens e de casamentos sólidos. Ao morrer, Henrique tinha apenas um filho varão: Eduardo, filho dele com Joana Seymour, sua terceira esposa.  Foi Eduardo, um protestante e seguidor da Igreja Anglicana, que assumiu depois do pai, tendo um curto reinado de 6 anos e vindo a falecer jovem, na idade de 15 anos. Após Eduardo VI, a filha mais velha de Henrique, Maria Tudor (filha dele com Catarina de Aragão), assumiria o trono como Maria I, uma católica.

O reinado de Maria ficou conhecido pela brutalidade e pela perseguição por ela empreendido contra protestantes, seguidores da Igreja Anglicana e suas doutrinas. Por isso, ficou conhecida como “Maria Sangrenta”, ou “Bloody Mary”. Maria restaurou o catolicismo na Inglaterra e terminou com o cisma surgido com seu pai, quando este fundou a Igreja da Inglaterra.

Maria tentou muitas vezes ter filhos, mas sem sucesso. Seu maior temor era ser sucedida por sua meia-irmã, Elizabeth, que professava a fé protestante. Pelo testamento deixado por Henrique, a ordem de sucessão colocava ela (Elizabeth) como herdeira do trono depois de Maria. A rainha católica morreria de câncer no útero em 1558, sem filhos e sendo sucedida, como temia, por sua irmã protestante.


(Cena do filme "Elizabeth", onde a então princesa protestante se encontra com a sua irmã e Rainha católica Maria I)


Elizabeth I reinaria por 44 anos, dando aos ingleses um período de estabilidade, onde o sentimento de identidade nacional floresceria, sendo marcado por um período de grande produção cultural.

Porém, Elizabeth também não teve filhos. Como ela também nunca nomeou um sucessor aparente, William Cecil, um estadista inglês e proeminente político secretamente entrou em contato com o Rei da Escócia, Jaime VI, para através dele e sua legítima pretensão ao trono inglês fazer uma transição de poder pacífica e tranquila. Jaime foi aconselhado a entrar em contato com Elizabeth ainda em vida para apresentar-se como um sucessor ideal. Ganhando a simpatia da rainha, ele acabou tornando-se o herdeiro aparente e com a morte de Elizabeth, ascendeu ao trono inglês em 1603, como Jaime I em união pessoal dos tronos da Inglaterra, Escócia e Irlanda. Foi em seu reinado que surgiu o “Reino da Grã-Bretanha e Irlanda”. Sendo ele favorável ao protestantismo, foi também durante seus 22 anos de reinado que se iniciou o processo de colonização da América britânica.

As tensões entre católicos e protestantes continuou na Inglaterra durante o seu reinado e o de seu filho, Carlos I.

Até Carlos I, a política inglesa era controlada pelo Rei em poder absoluto. No entanto, o monarca podia consultar uma assembleia de pequenos nobres reunidos num Parlamento, que na época tinha também o poder de recolher impostos.

As tensões entre o Rei e este Parlamento começaram quando o monarca casou-se com uma católica, o que desagradou a poderosa minoria puritana que representava um terço do Parlamento. As divergências aumentavam ao passo em que o monarca se mostrava mais autoritário, chegando a governar num período de 11 anos com o Parlamento dissolvido.

Nos idos de 1640, as divergências eram absolutas e por um lado, os membros do Parlamento (liderados pelo protestante Oliver Cromwell) reuniram tropas, ao mesmo tempo em que o Rei reunia as suas. Estava iniciada a primeira Guerra Civil inglesa. Os objetivos de ambos os lados eram claros. Os defensores do rei combateram por uma Igreja e um poder tradicional (conservadorismo). Os partidários do Parlamento defenderam reformas na religião, na política econômica e na repartição dos poderes (o então progressismo).

A primeira guerra civil terminou com a prisão do Rei e a imposição de uma série de exigências. Contudo, o monarca conseguiria fugir da prisão com apoio de alguns partidários. Ao tentar negociar apoio dos escoceses para um novo combate contra os protestantes, criou-se motivo suficiente para o segundo conflito, que terminaria novamente com a prisão de Carlos I e seu julgamento em 1648, onde por 68 votos a 67 fora condenado a morte.


(Cena do filme "To Kill a King", onde o Rei Carlos I é encaminhado para sua execução, diante de seu algoz Oliver Cromwell)


Com a morte de Carlos I, iniciava-se a ditadura de Oliver Cromwell, que duraria de 1648 a 1658, terminando na data de seu falecimento. Sucedido por seu filho, Richard Cromwell, este não manteria o poder e depois de um breve período de 1 ano no comando da Inglaterra (1659), ele seria sucedido por Carlos II, filho do finado Carlos I, quando então a monarquia fora restaurada. 

Estes eventos inspirariam Thomas Hobbes a escrever suas obras e suas impressões a cerca do Estado. Em "Leviatã", obra de 1651 (escrita e publicada durante o governo de Oliver Cromwell), Hobbes escreveria o primeiro ensaio de um contrato social.

Durante o governo de Carlos II (1660 à 1685), que era católico, as tensões entre católicos e protestantes continuariam. No entanto, a Igreja Anglicana, que agora estava restabelecida depois dos anos de Cromwell, continuava com poder. Para pacificar a situação, o monarca fez uma série de reformas na tentativa de adaptar a Igreja Anglicana aos anseios da população e do Parlamento. Com relativo sucesso, Carlos II seria sucedido por seu irmão mais novo, Jaime II, também católico.

John Locke, protestante exilado na Holanda, escreveu em 1681, durante o governo de Carlos II, a obra "Dois Tratados Sobre o Governo Civil". Assim como Hobbes, Locke observava os eventos políticos de seus anos e descreveu qual seria o melhor modelo de sociedade civil diante das liberdades individuais. Sua obra pode ser entendida como uma segunda tese do contrato social.

O maior receio dos protestantes ingleses era que Jaime II restaurasse o absolutismo. Temendo que seu governo fosse pró-católico e que afetasse os interesses do establishment puritano, o Parlamento (dominado por protestantes), afastou o monarca Jaime II do poder, naquilo que ficaria conhecido como "Revolução Gloriosa" (1688), pois foi uma remoção de um monarca do poder sem conflito armado.

Por conta das relações entre as coroas da Holanda e da Inglaterra, Guilherme III, monarca da Holanda e mais simpático perante os protestantes, ascendeu ao trono como o novo monarca, governando ao lado de Maria II, filha de Jaime II.

Daqui, surge o Império Britânico e o expansionismo inglês ao redor do mundo, através da Companhia Britânica das Índias Orientais, da conquista de colônias na África, Ásia e assim por diante.


II.                REFLEXÃO CRÍTICA a cerca da origem e desenvolvimento dos processos conservadores na Inglaterra e nos Estados Unidos

O que observamos após este resumo histórico dos processos políticos na Inglaterra dos séculos XVI e XVII são óbvios. Haviam dois tipos de conservadorismo na Inglaterra deste período. Um predominante e católico e outro ascendente e protestante, surgido durante a Reforma e o período do renascentismo.

Durante as guerras civis na Inglaterra e durante a Revolução Gloriosa, o catolicismo era considerado conservador. Pois os católicos eram favoráveis a um poder absoluto, enquanto os protestantes eram favoráveis a maior liberdade individual e menos poder nas mãos do monarca. O catolicismo era o velho e o protestantismo era o novo. Neste sentido, os protestantes eram os progressistas.

Assim que o Parlamento se torna uma força política independente e tão ou mais poderosa do que o Rei, o protestantismo se estabelece como novo “establishment”. Neste sentido, manter o status e o controle do país era o maior dos interesses dos puritanos, que forçavam direta ou indiretamente o monarca da Inglaterra a ser favorável ao protestantismo.

Foi também este protestantismo que migrou da Inglaterra para a Améria, fundando as treze colônias que um dia daria surgimento aos Estados Unidos da América.

Quando o protestantismo e suas teses se tornam padrão, aristocratas e a crescente burguesia começam a se entrelaçar, visando a manutenção do poder um do outro. Os outrora progressistas protestantes agora se tornam cada vez mais conservadores, pois uma vez tendo poder, eles procurarão manter este poder.

A questão é que durante este processo e cisma religioso entre católicos e protestantes, interesses políticos diversos se misturariam, ao mesmo tempo em que um movimento iluminista começava a emergir na Europa. Influenciado pelas luzes do renascentismo, intelectuais ingleses, franceses e alemães repensariam as liberdades individuais como preceito político e fundamental, dando origem ao que conhecemos por “iluminismo”. Foi neste período que nasceria o liberalismo clássico.

Ou seja, ao mesmo tempo em que havia um processo político e um cisma religioso, havia um processo intelectual e conceitual acontecendo na Europa. Dois movimentos, um de natureza conservadora e estatutária e outro de natureza progressista e popular.

As obras de Hobbes e Locke começam a ganhar maior destaque e influenciam a academia de seu tempo. O progresso agora ia além da pequena nobreza. Agora, era uma questão política e que envolvia interesses da alta burguesia, da média burguesia e dos súditos de maneira geral.

A revolução francesa surge neste contexto, sendo influenciada por autores ingleses. A revolução americana também surge neste contexto, onde os pais fundadores do país eram herdeiros diretos dos ideais do protestantismo inglês e das teses políticas advindas deste processo.

Se o movimento luterano e calvinista causaram grande comoção e importantes reformas na Europa continental, seria na Inglaterra que ganharia corpo político.

Ao passo que um velho establishment (católico) dá lugar a um novo establishment (protestante), os conceitos do que se quer conservar mudam. Como também mudam os interesses econômicos, políticos e sociais.

Com a ascensão do protestantismo, também surgem as identidades nacionais. Uma vez diminuído o poder do monarca, os interesses ficam menos personalizados no Rei e mais dissolvidos entre os nobres e burgueses. Neste sentido, o mercantilismo torna-se uma tese fundamentalmente protestante, ao mesmo tempo em que o domínio da terra faz com que o ambiente rural se transforme em resguardo dos princípios mais metafísicos.

Quando o conservador fala que quer conservar algo, é preciso saber qual é seu ponto de referência. O nascente liberalismo na pós-revolução gloriosa promovia uma expansão indireta do protestantismo. Logo, um conservador que se diz liberal, deve compreender que suas teses morais e metafísicas são advindas da REFORMA protestante e não do catolicismo.

Daí que o conservadorismo inglês é bastante ligado a tradição da separação dos poderes, das liberdades individuais e da liberdade religiosa. Pois foi por isso que os progressistas protestantes lutaram no passado e, uma vez conquistado, desejam preservar. É neste sentido que Edmund Burke critica a revolução francesa, ao fazer um comparativo com a revolução gloriosa na Inglaterra. O chamado “conservadorismo burkeano” é protestante, de raiz progressista em seu tempo. O próprio Burke fora chamado e progressista por muitos de seus rivais intelectuais.

No entanto, há de se fazer uma distinção. Os preceitos morais e metafísicos do protestante, quando assumidos como verdade universal ou como verdade a ser preservada, torna-se tão centralizadora e autoritária quanto o catolicismo. Exemplo vivo disso foi o governo ditatorial de Oliver Cromwell.

As ideias que fundaram a identidade nacional britânica nos idos do século XVIII forjariam também os ideais que fundariam os Estados Unidos e gerariam reformas na França. Estas ideias, baseadas nos mesmos princípios protestantes de liberdade individual, limitação dos poderes e liberdade religiosa encontraria diferentes processos transformatórios em outros países.

O iluminismo escocês, conhecido por sua tradição empírica, encontra raízes nos processos políticos pelo qual a Grã-Bretanha passou. Já o iluminismo francês, também conhecido por sua tradição racionalista, encontra raízes nos processos ocorridos na França absoluta e reformada pós Luís XVI.

O iluminismo alemão, inspirado pelo luteranismo e calvinismo, encontraria diferentes resultados através da influência das Igrejas protestantes da Holanda e da Polônia, onde mais tarde formariam a estrutura do Império Alemão.

Os Estados Unidos herdaria um pouco da tradição escocesa e da francesa. Notadamente, podemos encontrar em John Adams, Alexander Hamilton, Thomas Jefferson e outros pais fundadores pensamentos que originaram-se dos primeiros peregrinos ingleses como também de pensadores franceses, advindos de uma herança racionalista. E é neste sentido que surge o conservadorismo americano.

Se na Inglaterra o conservadorismo tem origem no protestantismo progressista, nos Estados Unidos o conservadorismo tem origem no protestantismo tradicionalista. Ambos os conservadorismos surgem em tempos diferentes e em contextos diferentes. Quem fez a revolução americana foram americanos filhos de ingleses ou colonos ingleses que viam na América a “Terra Prometida” dos hebreus. Havia um outro tipo de identidade nacional na formação dos EUA que não havia na Inglaterra.

Na Inglaterra, os puritanos lutaram contra o poder absoluto do Rei. Nos EUA, os puritanos lutaram por uma utopia metafísica bíblica.

Logo, o que os puritanos americanos querem preservar é a utopia de uma terra da liberdade, onde os homens encontrariam na fé a salvação. Diferente da Inglaterra, onde os puritanos desejavam maior liberdade religiosa e não uma terra de liberdade.


III.             O PAPEL DO LIBERALISMO: Uma conclusão desafiadora

O leitor deve estar se fazendo esta pergunta: certo, entendi o processo formador dos conservadorismos na Inglaterra e nos Estados Unidos. Mas e o liberalismo, onde entra nisso tudo?

Logo no texto acima, eu afirmei o seguinte: “Ou seja, ao mesmo tempo em que havia um processo político e um cisma religioso, havia um processo intelectual e conceitual acontecendo na Europa. Dois movimentos, um de natureza conservadora e estatutária e outro de natureza progressista e popular.”.

O liberalismo é fruto deste movimento intelectual, iluminista, conceitual e de natureza progressista e popular.

Lembra dos processos iluministas escocês, francês e alemão? Pois bem, o liberalismo clássico surge do conjunto destas três escolas iluministas. Surge primeiro no iluminismo escocês e seus autores, derivado da revolução puritana contra o absolutismo católico. Surge da reflexão racionalista francesa e seus autores, advinda do processo histórico e formador do choque entre a reforma protestante e o poderoso clero católico francês. E finalmente surge da unificação alemã e seu processo de desenvolvimento.

Liberalismo clássico é uma ideologia que transcende a religião e a metafísica. É um processo político e social permanente. Já o conservadorismo é um processo cultural e metafísico. Os ideais do liberalismo clássico surgiram na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos e na Alemanha. Surgiram de diferentes contextos históricos e eventos distintos. No entanto, é uma ideologia que preserva em seu cerne o grande objetivo de seus pais fundadores: a busca incessante por uma organização social que maximize as liberdades individuais.

A diferença fundamental entre o conservadorismo (qualquer um deles) e o liberalismo, é que o primeiro quer preservar uma ordem de fatores em nome de uma moral fincada sobre preceitos metafísicos. Já o liberalismo quer expandir um princípio (a liberdade) adaptando-se as diferentes circunstâncias. O liberalismo é universalista! Do mesmo modo que houve um iluminismo escocês, um francês e um alemão, houve também um liberalismo escocês, um francês e um alemão.

E todos os processos liberais visavam o mesmo fim. Expandir a liberdade humana. No século XIX, quando os conservadores usurparam o conceito político de liberalismo, os novos grupos sociais surgidos na sociedade industrial ficaram órfãos de uma ideologia que os atendesse plenamente. Foi neste vazio conceitual e ideológico que surgiu o socialismo e o anarquismo. Ambos, aproveitando as mesmas teses liberais de expansão das liberdades individuais.

A culpa pelo surgimento do socialismo e do anarquismo é tão e unicamente da falta de preservação política e social do liberalismo clássico enquanto ideologia. Os conservadores, ao usurparem o liberalismo, criaram espaço para o surgimento de outras correntes. Para combater a tendência concentradora e retardante do conservadorismo burguês, o liberalismo precisa perseverar enquanto uma força expansiva de liberdades.

E esta é outra forma de compreender a diferença entre o liberalismo e o conservadorismo. O liberalismo é uma força que projeta a liberdade sem filtros metafísicos. Já o conservadorismo retarda a liberdade em favor de seus filtros metafísicos. O liberalismo é progresso da liberdade. O conservadorismo é a manutenção de um status metafísico. Por isso também o liberalismo é a favor de maior integração entre os povos, enquanto o conservadorismo tende a ser mais isolacionista.

A tese de liberdades económicas, que o conservadorismo das nações desenvolvidas utiliza, não é uma tese puramente liberal clássica. Havia intensa liberdade econômica durante o mercantilismo, por exemplo. Mas somente entre as nações que concorriam entre si. Logo, qual é a lógica de se defender a liberdade económica num mundo onde não existe paridade de condições de concorrência?

A verdade é que o liberalismo é mais do que uma tese econômica. O liberalismo é uma tese social e política, fruto de um processo humanista surgido no renascentismo e expandido no iluminismo. A liberdade económica pode surgir por diversos meios a depender das características de uma dada sociedade. É preciso que o liberalismo deixe de ser monopólio das nações de língua inglesa, francesa e alemã e ganhe contornos autonomistas e independentes em outras culturas, sociedades e línguas. Somente assim as teses fundamentais do liberalismo clássico poderão sobreviver diante do conservadorismo que tanto nos usurpa.



IV.             CONCEITUANDO

Para que fique claro os conceitos introduzidos neste artigo, é importante recordar o que segue:

1.      O conservadorismo inglês é diferente do americano.

2.      O conservadorismo inglês é derivado do protestantismo progressista.

3.      O conservadorismo americano é derivado do protestantismo tradicionalista.

4.      O liberalismo clássico é uma ideologia nascida do iluminismo e possui como destino manifesto a expansão das liberdades individuais.

5.      O conservadorismo é uma posição política baseada num status metafísico que se pretende preservar.

6.      Um conservador liberal não é um liberal, é apenas um conservador que utiliza uma tese económica surgida das nações desenvolvidas.

7.      O liberalismo não é uma ideologia fechada ou presa no tempo e espaço. É um conjunto de princípios aberto a diferentes experimentações em diferentes sociedades.

8.      Por ser uma ideologia aberta e universalista, o liberalismo não possui uma única forma de expressão ou de atuação, podendo ser exercida de diversas formas, desde que seu princípio estrutural se mantenha o mesmo: expansão da liberdade individual.



Obrigado pela leitura,

Sasha Lamounier
Um Liberal Clássico

Porto, Portugal
25 de Fevereiro de 2017