18/01/2021

A ENCRUZILHADA BRASILEIRA

 


A ENCRUZILHADA BRASILEIRA

 

 Introdução


Não é fácil traduzir em um único artigo a hecatombe que assola a população brasileira. No entanto, o esforço em o fazer certamente ajudará a esclarecer pontos cegos ignorados e fornecerá ao leitor a capacidade de repensar outros tantos aqui não tratados. Este é, possivelmente, o primeiro artigo de uma série de outros que serão produzidos sobre o mesmo tema: a encruzilhada brasileira. Pois acredito que o Brasil encontra-se num momento-chave de sua história, quer económica, social, cultural ou política. O entendimento da situação e os cenários possíveis que se avizinham nos permitem estruturar alguma estratégia, nem que seja ao nível individual e limitado.

 

Por isso, este artigo divide-se em três subtemas. Primeiro, faremos um panorama geral da economia brasileira (a real, não da Bolsa de Valores). De seguida, faremos uma análise do ponto de situação do drama social, sanitário e humano do cidadão e cidadã brasileiro. E, por fim, compreenderemos a conjuntura política e institucional do país, seus desafios e suas possibilidades frente aos fatores económicos e sociais.

 

FATOR ECONÓMICO

  

O Brasil vinha se recuperando lentamente de uma grande crise entre os anos 2015-2016, quando o PIB brasileiro encolheu um total de 6,83% (o equivalente a perda de 285 bilhões de reais em valor de PIB). Ao mesmo tempo, viu sua dívida pública aumentar, saindo de 63% na relação com o PIB para 81% em 2017. Antes da pandemia do COVID-19 atingir o Brasil e os mercados internacionais, o PIB havia recuperado 3,78% e a dívida pública se mantinha na ordem dos 80%.


Portanto, o Brasil ainda não tinha se recuperado totalmente da crise. O desemprego se manteve durante todo o período de 2016-2020 na casa dos 12-15%, o IPC (Índice de Preços ao Consumidor[1]) tem constantemente aumentado, tendo crescido durante o período 2016-2020 em um total de 27,97%, enquanto o Salário Mínimo[2] teve um crescimento no mesmo período de 26,65%, saindo de 880 reais em 2016 para 1.039 reais em 2020.


Embora a política de valorização do salário mínimo tenha se mantido (sempre ajustado pela inflação), isso não significa que a condição social melhorou. Segundo dados do IBGE, mais de 72% da população brasileira vive entre 1 a 7 salários mínimos enquanto renda familiar. Com o custo global dos serviços, produtos industrializados e alimentos crescendo, a condição de vida fica necessariamente apertada. Embora o PIB per capita seja relativamente alto (cerca de 8 mil dólares), a má distribuição de renda faz com que este indicador não explique de maneira concreta a realidade brasileira. Por isso, a renda familiar per capita é o melhor indicador, pois apresenta a média do quanto as famílias brasileiras de modo geral ganham diante do cenário económico brasileiro. Em 2019, segundo o IBGE, a renda média per capita no Brasil ficou em 1.439 reais (ou 271 dólares). 


Segundo pesquisa divulgada pela EXAME/IDEA[3], para 59% da população brasileira o custo de vida aumentou durante a pandemia. Mais especificamente nos seguintes nichos:




Para melhor compreender o efeito da desigualdade e do custo de vida médio do brasileiro, precisamos averiguar como está distribuído a renda domiciliar no país. Segundo dados do IBGE e do PNAD, 41%[4] da população brasileira ganha entre R$ 89,00 e até 4 salários mínimos (R$ 4.156). Esta é a camada pobre da sociedade, inclusos aqui os grupos que recebem o Bolsa Família. Já os 1% mais ricos do Brasil vivem em média com 17 mil reais por mês (16 SM). O grosso da população vive entre os 5 SM e os 15 SM, o que equivale a um grupo de 58%, subdividido entre classe B (classe média alta), C (classe média) e D (classe média baixa). A classe E é a considerada pobre ou indigente do país.


Para ficar mais claro, a divisão real da renda das famílias brasileiras seria algo assim: 

 

Renda por Salário Mínimo

Percentagem da População

Milhões de Hab.

E

Menos de 1 SM a 4 SM

41%

85 Milhões

D

De 5 a 7 SM

31%

64 Milhões

C

De 8 a 10 SM

23%

48 Milhões

B

De 11 a 15 SM

4%

8 Milhões

A

Mais de 16 SM

1%

2 Milhões


De acordo com dados do PNAD 2015, cerca de 85% da população brasileira vive em áreas urbanas, enquanto 15% vive em áreas rurais. Este cenário demográfico parece estar de algum modo associado com a participação dos setores da economia no PIB brasileiro.

Trocando em miúdos, podemos afirmar que cerca de 150 milhões de brasileiros (de um total de 209 milhões), vivem entre a miséria de menos de 1 salário mínimo a 7 salários mínimos no país.


Segundo dados de 2019, o Produto Interno Bruto (PIB) é dividido, por setor, nos seguintes termos: 73% serviços, 9% indústria, 18% agricultura. Em 2008 a indústria chegou a representar 29% do PIB, de modo que esta brusca queda em 10 anos representa claramente o agudo processo de desindustrialização do país. Em 2007, o setor de serviços representava 66% do PIB, enquanto a agricultura tinha a menor fatia, representando 5%. A alteração neste cenário indica duas impactantes consequências: a perda de complexidade económica no Brasil e a cada vez maior dependência do consumo das famílias e da agricultura para alavancar o PIB.


Portanto, a radiografia socioeconómica do Brasil seria basicamente a seguinte:


1º. Uma sociedade pobre e de baixa renda: 72% da população de zero até 7 SM/mês;

2º. Uma sociedade urbana e consumista: 85% vivendo em áreas urbanas;

3º. Uma sociedade dependente do setor de serviços: setor representa 73% do PIB;

4º. Uma sociedade endividada: 48% da população tem o “nome sujo” no SPC Brasil[5].

5º. Uma sociedade desempregada ou dependente de subemprego.

6º. Uma economia que se endivida e que não cresce.

7º. Uma economia que afasta a indústria e não possui investimentos-chave em infraestrutura, saúde, educação e inovação.


Não irei entrar aqui em detalhes ou discussões aprofundadas sobre as razões destes dados serem a conjuntura socioeconómica do país. Mas o fato é que temos um cenário onde todos os setores estão engessados. Ou seja, o Estado tem pouca margem para investir, pois não tem arrecadação suficiente e precisaria se endividar para poder gastar. O setor privado está retraído, produzindo e poupando o que lucra ao invés de reinvestir. A carga tributária contínua imóvel, da mesma forma que o investimento externo não investe na economia real, o que mantém o cenário de falta de infraestrutura, educação e inovação a mesma. A sociedade, dependente do consumo, está concentrada no setor de serviços, o que também inclui a Internet.


Não há horizonte de melhoria da renda, embora o endividamento se afunile. Uma vez que o consumo continua forte, mas sem aumento real da renda, o crédito e os empréstimos se tornam a última alternativa para as famílias. Por isso a tendência é de aumento da dívida e o maior engessamento da capacidade de pagamento dos brasileiros. Neste cenário, a conjuntura é claramente a de quebra do sistema económico. Pois se todos precisam consumir, se o PIB não consegue crescer mais do que a dívida, se o Estado não tem como investir e se ninguém de fora irá investir, então não há saída se não a depressão económica. Uma vez que o cenário de depressão é internacional, o Brasil caminha para entrar numa ciranda de décadas perdidas, com ínfimo crescimento do PIB e exponencial crescimento da dívida. Na prática, isso significa depreciação da moeda brasileira, aumento de preços, estagnação do rendimento das famílias, aprofundamento das desigualdades (com aumento da pobreza), e a cada vez maior dependência do mercado informal (quer online ou offline).


FATOR SOCIAL

 

Há aqui dois indicadores importantes a serem observados. O índice de GINI e o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). O primeiro corresponde a um termômetro da desigualdade de uma sociedade, marcando um valor entre 0 (completa igualdade) e 1 (completa desigualdade). O Brasil está em 0,543 de GINI (próximo a países africanos), enquanto no IDH configura com 0,755, estando, portanto, no nível dos países em desenvolvimento.


Segundo o PNAD 2018[6], a taxa de analfabetismo no Brasil é de 6,8%, enquanto o analfabetismo funcional (ou seja, quando se sabe ler e escrever mas não se compreende corretamente o que se lê e escreve) no Brasil é de 30%, segundo o Inaf 2018[7]. Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), cerca de 47% dos brasileiros (ou 100 milhões de pessoas) não tem acesso a tratamento de água e esgoto, tendo de recorrer a alternativos quando se trata de despojar dejetos.


Em termos gerais, o que estes dados sugerem é que o Brasil, socialmente falando, é um país desigual, com alta taxa de pobreza e de analfabetismo funcional, com grandes dificuldades do ponto de vista da infraestrutura e uma cada vez maior dependência do Estado na oferta de algumas necessidades básicas. Considerando que renda e formação estão diretamente relacionados, e levando em conta que o Brasil configura com uma das mais baixas notas no PISA 2018 (índice que avalia a qualidade da educação nos países), estando deficitário em leitura, matemática e ciências, é muito improvável imaginar que poderemos fazer o Brasil entrar na concorrência com China e Índia pela Indústria 4.0 (tecnologias da informação) por entre os BRICS.


Na verdade, é correto afirmar que o Brasil sofre um apagão intelectual, com poucos investimentos em educação básica e superior, e com poucas alternativas para os estudantes se aperfeiçoarem e adentrarem o mercado de trabalho. A grande maioria dos brasileiros sequer completam o estudo. Isso quando frequentam a escola. Com dificuldades económicas, com famílias disfuncionais e com ambientes hostis e violentos, o progresso humano do brasileiro está praticamente anulado. E não havendo devida preocupação ou consenso por parte das elites económicas e políticas acerca deste problema, a tendência é que estas questões se mantenham pelo médio prazo.


Em tal cenário de crescente mau desempenho geral da economia (afetando também as classes médias e as elites), com uma população pobre e que está empobrecendo mais ainda, é natural que as demandas psicológicas e fisiológicas também cresçam. Até os anos 2010, o Estado era o principal provedor de suporte a esta sociedade. Mas desde alguns anos atrás, o crescimento das Igrejas nesta função também tem aumentado. Segundo Teixeira da Silva (2017)[8]:


A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) foi a instituição religiosa que empreendeu de forma mais significativa (desde 1980) o modelo institucional ou corporativo como estratégia de ocupação dos espaços políticos, majoritariamente nas casas legislativas. Ainda que os motivos para esta mobilização sejam os mesmos de outras denominações, como o temor de forças sociais e políticas adversas. Todavia, tal orientação não se restringiu a influência aos contornos da Carta de 1988, pelo contrário, foi ampliado nas eleições subsequentes mediante a estruturação de táticas articuladas por lideranças remanescentes de seu alto escalão, como o bispo Rodrigues e o bispo Marcelo Crivella.


Com a crise do petismo e das alas progressistas desde 2015, aquilo que já estava em franca expansão desde a redemocratização, se afunilou ainda mais. As Igrejas Neopentecostais tornaram-se os mais importantes financiadores de aportes sociais a comunidades carentes, utilizando-se deste ingrediente como plataforma política para seus interesses diversos. A IURD (Igreja Universal do Reino de Deus), do Bispo Edir Macedo, é o maior exemplo. Não é de se admirar que, nas eleições de 2018, com a ala progressista (e também mais afeita aos aportes sociais do Estado) enfraquecidos, tenha surgido um nome que remontasse ao discurso conservador do interior do Brasil e das camadas mais populares.

 

Jair Messias Bolsonaro, candidato até então caricato e comum personagem de programas de TV populares (tal como CQC na Band e o Programa da Luciana Gimenez na RedeTV), surgiu como algo inovador. Diante de uma população urbana, pobre, conectada a Internet, diante da rejeição ao lulopetismo e da crescente violência nos centros urbanos, Bolsonaro aglutinou diferentes interesses para a criação de um movimento de natureza neoconservadora no Brasil. Estes interesses, para além da Bancada Evangélica (políticos ligados a Igrejas Evangélicas), também incluiria a Bancada da Bala (políticos defensores do armamento civil) e, em certa medida, também a Bancada do Boi (agropecuária).

 

Mas a particularidade de Bolsonaro seria um pouco mais profunda do que as bandeiras que seu movimento representava. Representante sindicalista de ex-polícias e ex-militares do Rio de Janeiro, Bolsonaro e família estão intimamente ligados a grupos milicianos da capital carioca, como o Escritório do Crime (Bolsonaro chegou a tentar legalizar as milícias quando ainda era deputado federal[9]). Com 29 anos de carreira no Congresso Nacional, sem nenhuma lei aprovada ou projeto robusto apresentado para o interesse dos seus eleitores no Rio de Janeiro, Bolsonaro fez fama como “linha dura” e defensor de medidas violentas contra o crime organizado.


Ex-capitão do exército, Bolsonaro foi convidado a se reformar antes do tempo nas Forças Armadas, após uma tentativa de atentado e insubordinação:


O processo tinha dois objetos: um artigo que ele escreveu em 1986 para a revista Veja para pedir aumento salarial para a tropa, sem consulta aos seus superiores, e a afirmação, meses depois, pela mesma publicação, de que ele e outro oficial haviam elaborado um plano para explodir bombas-relógio em unidades militares do Rio"[10].


Estranhamente, este tipo de político recebeu apoio das Forças Armadas durante a eleição, tendo Bolsonaro escolhido o General Hamilton Mourão como candidato a Vice-Presidente em sua chapa. O general, também afeito da tese de que em 1964 houve uma revolução e não um golpe de Estado, tal como também pensa Bolsonaro, raramente desautoriza o cabeça de chapa, e chegou mesmo a afirmar que quando o país entra em caos, as Forças Armadas tem o dever de “impor a ordem”, mas sem esclarecer se isso seria dentro das regras constitucionais ou não.


A conjuntura social brasileira, bastante afetada pela pobreza e pela desarticulação social, ainda precisa compreender como os anos de 2013 até 2018 geraram o ambiente para que Bolsonaro e Mourão fossem eleitos presidente e vice-presidente da República. Certamente a Lava Jato, a crise do lulopetismo, a crise económica de 2015-2016 e certos elementos do Marketing Digital podem explicar como uma sociedade voltou-se 180 graus de um partido progressista (como o PT) para um governo neoconservador. Alguns indícios já foram explicados com base nos dados de conjuntura e na questão do crescimento do fundamentalismo evangélico. Em todo caso, uma pergunta permanece: o que acontece com as instituições brasileiras?

 

FATOR INSTITUCIONAL e POLÍTICO

 

Quando Luís Inácio Lula da Silva, ex-presidente da República pelo Partido dos Trabalhadores, foi levado por uma condução coercitiva autorizada pelo Juiz Sérgio Moro para depor a Polícia Federal em 4 de Março de 2016, o ambiente anti-lulopetista obscureceu do que realmente se tratava tal evento. A condução coercitiva é um dispositivo do Código de Processo Penal Brasileiro para exigir que um suspeito ou depoente apresente seu depoimento caso, injustificadamente, não tenha comparecido a uma intimação prévia. Neste caso do Lula, ele nunca havia sido intimado a depor. E, de surpresa, recebeu a Polícia Federal em sua casa levando-o para depor obrigatoriamente.

 

Este fato, além do grampo ilegal que Moro autorizou e vazou para a imprensa, quando Lula conversava diretamente com a então Presidente da República Dilma Rousseff, demonstra que, ainda que se concorde com a Lava Jato, o devido processo legal foi atropelado pela jurisdição de Curitiba (onde se situava Moro). Em meio a maior crise económica da história do Brasil até então, com um conjunto de vazamentos a imprensa por parte dos procuradores da Lava Jato e do próprio Juiz, ficou evidente que a operação não tinha um escopo unicamente jurídico, mas fortemente político.

 

Em um conjunto de interesses que se alinhavam, quer seja pelo receio do que se tratava a Lava Jato, ou ainda do que ela não se tratava, partidos políticos, elites económicas e as próprias Forças Armadas acabaram se intrometendo nesta grande confusão que o país viveu entre os anos de 2014 e 2018. Ainda não está claro qual era o real objetivo da Lava Jato, mas o fato é que logo após Bolsonaro ter sido eleito, Sérgio Moro tornou-se o seu Ministro da Justiça, mesmo nunca tendo tido nenhuma relação prévia com este candidato.


Bolsonaro tinha suas razões para chamar Moro, o ceifador de petistas, para o ministério. Seria uma boa vitrine e uma demonstração de que ele, Bolsonaro, estaria inteiramente a favor da Lava Jato (sendo ele um político idóneo). Contudo, houve estranhamento quando Moro, um juiz de carreira, renunciou a suas funções no juízo de Curitiba para ocupar um cargo no executivo federal, tendo sido convidado por um político historicamente ligado a milícias e afeito a defesa ideológica do Golpe de 1964. A pergunta que deve ser feita é: onde estavam as instituições da República para moderar estas situações?


O Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público e mesmo a Procuradoria-Geral da República deveriam ter sido, constitucionalmente, as instâncias moderadoras desta grande confusão político-midiática de militância jurídica. Não o foram. E a única explicação possível é que estas instituições, também, estavam arroladas em seus próprios problemas. Quando, em 3 de Abril de 2018, o STF iria julgar o Habeas Corpus de Lula (já então condenado por Sérgio Moro), o então comandante das Forças Armadas, General Villas-Boas, postou em sua conta do Twitter que o Exército Brasileiro “compartilha o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz e à democracia bem como se mantém atento as suas missões institucionais”.


Tempos depois, Villas-Boas confirmou que calculou intervir no STF caso o Supremo desse o Habeas Corpus a Lula[11]. Portanto, o STF, as Forças Armadas, o Ministério Público, assim como o Congresso Nacional e o Poder Executivo estavam, todos eles, em posição frágil que beirava a não-institucionalidade (ou até mesmo o golpismo). Pois quando a separação de poderes e o regramento do Estado de Direito não é devidamente respeitado pelos seus principais atores, temos aqui um cenário de ruptura institucional. Durante os anos de 2014 a 2018 foi isto que aconteceu, em ressonância as agitações sociais e midiáticas envolvendo a estrutura de poder da República brasileira.


Este cenário, que acabou impedindo Lula de ser candidato nas eleições de 2018, deu a Jair Bolsonaro o palanque ideal. Com demais partidos desgastados pela Lava Jato, ele construiu em torno de si a imagem de “político outsider”, que estaria fora das “tramas” de corrupção de Brasília e que, graças a sua fé e a seu passado como militar, iria trazer o Brasil para os trilhos. Embora Lula não fosse candidato, ele conseguiu colocar seu ex-ministro da Educação e ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, no segundo turno. A polarização que dividiu o país durante o impeachment de Dilma Rousseff e nos últimos 4 anos fez-se novamente presente. Ou se optava por PT (Haddad) ou por não-PT (Bolsonaro).

 

As declarações golpistas em favor do regime de 1964 e 1968, as declarações anti direitos humanos e em favor da tortura (Bolsonaro é um fã do ex-torturador do regime militar, Carlos Alberto Brilhante Ustra) e o programa de governo raso e superficial ficou ofuscado por um grande transe nacional anti-petista. Um transe costurado pela Lava Jato, com apoio da grande mídia e com suporte das grandes elites, que viam na queda de Dilma e do PT uma oportunidade para seus interesses se fazerem melhor endereçados através dos partidos fisiológicos do Congresso Nacional (PMDB, DEM e entre outros). Bolsonaro foi eleito e, em 01 de Janeiro de 2019, assumiu funções no cargo mais alto da República brasileira, levando com ele militares saudosistas do regime militar, milicianos, fundamentalistas evangélicos e uma nova visão de Brasil, avessa a tudo o que antes existia e a tudo o que antes havia sido projetado para o país.


CONCLUSÃO

 

O ponto de inflexão da sociedade brasileira foi, certamente, o ano de 2013. O país havia assumido o compromisso de sediar a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Crescentes insatisfações com a política e a condução da economia começou a fazer grupos ligados as velhas e novas classes médias se manifestarem contra “tudo o que estava ai”. Foram estas as manifestações que entraram para a história como a “Revolta dos 20 Centavos”. Neste momento, não havia ainda petismo ou antipetismo, mas havia um sentimento de revolta generalizado.

 

Interpreto isso como parte da consciência que o povo mais pobre ganhou durante os anos Lula-Dilma, quando saíram da extrema pobreza e, criando a Nova Classe Média, entraram para o mercado de consumo e dele fizeram bom proveito. Uma vez que agora estes grupos, antes marginalizados, ganharam “escopo de cidadania-consumista”, resolveram exigir mais do que aquilo que ganharam. Dilma, nesta altura, representava o establishment e, portanto, a norma. Revoltar-se contra ela era uma obrigação daquele que queria algo novo.

 

Alinhados com a nova classe média, estava a velha classe média, que viu-se deixada de lado em seus privilégios de classe quando começaram a ter de dividir a estrutura de poder social com os ex-pobres que agora se incluíam como “iguais”. O choque cultural brasileiro, promovido por esta ascensão dos grupos mais pobres, também se fez notar diante de um grande sentimento de otimismo pregresso. Quando Lula saiu do poder no auge de sua popularidade de 87% e com Copa do Mundo e Olimpíada vindo para o Brasil (dois grandes eventos de envergadura mundial), parecia que o país estava vivendo aquele tão sonhado futuro das velhas gerações.

 

Por um lado, a Nova Classe Média queria viver este futuro e se sentir parte dele. Mas por outro lado, havia grande ressentimento por parte da Velha Classe Média diante de um país que estava dando certo mas não necessariamente por causa dela. A força do lulopetismo estava baseada nas classes E, D e parte da C. Em 2013, a classe C por inteira começou a se revoltar com o “estado de coisas”, de modo que na eleição presidencial de 2014, uma das mais apertadas da história brasileira, as classes E e D mantiveram-se leais ao PT, enquanto as classes B e C moveram-se fortemente para o PSDB de Aécio Neves.


Este foi o segundo ponto de inflexão. Com denúncias da Lava Jato surgindo a todo momento e a crise económica se avizinhando, o ambiente político já conturbado tomou conta do cenário e a população espontaneamente ativa de 2013 começou a ser aparelhada por partidos e movimentos (entre eles o MBL). A partir de 2015, remover Dilma do poder era uma necessidade a todo custo (mesmo que nem houvesse comprovadamente tese jurídica que permitisse exigir um impeachment). Em meio ao aprofundamento da crise económica, a sociedade foi ficando mais irritada, enquanto era alimentada pela mídia e pelos movimentos políticos. Em Dezembro de 2015, Eduardo Cunha (então Presidente da Câmara dos Deputados), aceita um dos pedidos de impeachment.

 

E este foi o terceiro ponto de inflexão. Acuados, o PT teve de reorganizar as tropas, tanto para defender o mandato de Dilma, quanto para defender o legado de Lula. Construindo a narrativa de vitimização e perseguição política, estabeleceram a polarização como único meio de sobrevivência. Primeiro, o beneficiado pela queda de Dilma, Michel Temer, tornou-se o grande alvo desta narrativa de polarização. Oportunista e fisiológico, Temer não era nem anti e nem pro PT, mas a favor de si mesmo. Nem ele e nem o PMDB eram os verdadeiros antagónicos ao projeto petista. Era necessário outro polarizador.

 

Durante 2017 e 2018, anos em que se deram efeito os julgamentos de Lula no caso do Triplex, Sérgio Moro (uma figura já controversa), tornou-se o foco polarizador. Mas no final das contas, Moro não é nada mais ou nada menos do que um vislumbrado juiz de primeira instância que viu na Lava Jato um meio de fazer nome e notoriedade. Pela fama (e não pelo Brasil ou pela justiça), ele aderiu ao propagandismo midiático e a militância jurídica (junto a Deltan Dallagnol e demais procuradores da Lava Jato), fato este que deu ao PT a narrativa perfeita para polarizar a imagem de Lula com a de Moro.

 

Esta estratégia surtiu efeito até a eleição de 2018, quando ai sim Jair Bolsonaro tornou-se o grande polarizador do PT. Neste ponto, o Partido dos Trabalhadores pode ter objetivamente e estrategicamente escolhido Bolsonaro como adversário político, supondo que seria um candidato facilmente derrotado ou jocoso, e que favoreceria a narrativa de Lula tanto da perseguição política quanto do retorno triunfante. Porém, houve uma facada. Até hoje não se sabe se esta facada foi verdadeira ou não, visto que as investigações e o próprio julgamento do criminoso ficaram sobre desfoco da mídia e da justiça. Sabe-se que, graças a facada, Bolsonaro pode usar a narrativa da vitimização e fugir aos debates.

 

Não posso afirmar que Haddad teria vencido se Bolsonaro não tivesse levado a facada. Mas posso afirmar que, caso Haddad tivesse vencido, seu governo seria bastante caótico e tumultuado, visto que todo o esforço para derrubar o PT e a imagem de Lula teria sido em vão com uma vitória do partido em 2018. Em todo caso, com a vitória de Bolsonaro, forças sinistras e até então silenciosas da sociedade brasileira vieram a tona. E, num cenário onde todos estão contra todos e ninguém está pelo Brasil, aquele que melhor aglutinar os fatores socioeconómicos com a força bruta será aquele que terá maior sucesso.


Infelizmente, parece que Bolsonaro é esta figura. Unindo o corporativismo militar, a força paralela das milícias e seus negócios pelo país, unindo Igrejas Evangélicas e seus projetos de poder, e sendo favorecido pela conjuntura económica de crise e com uma sociedade pobre, desesperada, desamparada e inofensiva, Bolsonaro consegue arregimentar uma fiel e leal parcela do eleitorado brasileiro, que configura uma média de 25% do eleitorado. Mesmo diante da pandemia, mesmo diante do caos, Bolsonaro consegue manipular a narrativa e manter-se no topo, pois ele não fala para as classes A, B ou C. Ele fala para as classes D e E, as mesmas que apoiavam o PT até 2013.


Ainda que surja alternativas capazes de aglutinar apoio das classes C e B, por exemplo, será insuficiente para lidar com o forte grosso da sociedade brasileira, que são as classes D e E. Usar argumentos racionais não será suficiente, pois as camadas mais pobres estão imunes a racionalidade. Elas precisam pensar em comer e sobreviver. Não tem tempo para o resto. Do mesmo modo é mais fácil manter-se fiel ao grupo de que faz parte, do que simplesmente voltar-se contra aquele que lhe dá o pão de todo dia. Bolsonaro conhece o valor do Bolsa Família e dos subsídios, como também conhece o valor do discurso anti-establishment. A tendência é, portanto, que o movimento bolsonarista se manterá firme e forte contra tudo e todos. Pois se trata de um movimento nascido de um pertencimento social inovador da Nova Classe Média. Um sentimento de poder que, antes, ela não sentia. Se perderam a esperança do lulismo, renovaram-na com o bolsonarismo.


Conjunturas e Cenários de futuro

 

Por fim, podemos estabelecer alguns cenários potenciais para o Brasil de 2021 e além. Haverá pelo menos outros dois pontos de inflexão política: um possível impeachment de Bolsonaro e a eleição presidencial de 2022. Estes dois pontos são fulcrais para o país.

 

Chegamos aqui com um PT enfraquecido e desacreditado, com uma centro-direita e centro-esquerda desarticulada e sem liderança carismática capaz de bater de frente com Bolsonaro. A pandemia está em seu pior momento, com a crise económica internacional e nacional se aprofundando e a pobreza também aumentando.

 

Neste cenário, forças políticas podem optar pela alternativa do impeachment, visto que seus interesses não mais estariam ligados ao bolsonarismo e aquilo que ele, enquanto Presidente, pode ofertar dentro do panorama de favores do poder executivo. Se o impeachment for pautado, Bolsonaro se verá com o risco de perder o poder. E junto a ele, todos os grupos que o apoiam. Neste caso, ele buscaria se defender e radicalizaria seus seguidores, forçando o Parlamento a rejeitar o impeachment.

 

Mas caso o impedimento fosse para frente e ele fosse afastado, Bolsonaro certamente criaria o caos pelo país, usando de todo o seu poder para forçar as instituições a dobrarem-se a sua vontade. Uma vez que a alta cúpula das Forças Armadas respeitam mais Bolsonaro do que o STF ou o Congresso, é possível que as Forças continuariam junto a Bolsonaro neste golpe de Estado e assegurarariam o seu mandato, podendo isso ter consequências graves do ponto de vista institucional e da repressão do novo regime.

 

Caso não tenha nenhum impeachment e caminhemos para uma eleição presidencial em 2022, o cenário é o mesmo, com algumas diferenças. Bolsonaro irá buscar a reeleição a todo custo e não aceitará perder. Uma vez que as instituições não tem capacidade de impedir a força do bolsonarismo, aliado as Forças Armadas, todos os cenários apontam para uma vitória de Bolsonaro. Quer seja através de um golpe de Estado ou através do aparelhamento total do Estado pelos seus grupos de apoio.

 

Se Bolsonaro ficar no poder até 2026, é possível que ele lance um candidato ligado a sua família, ou um dos filhos, como Eduardo Bolsonaro. A esta altura, o país já estaria irreconhecível, tanto do ponto de vista socioeconómico quanto político. Todas as elites teriam de se adaptar a nova regra e status quo, o que fortaleceria Bolsonaro e seu regime. A alternativa a este cenário seria uma união das esquerdas e direitas junto a líderes carismáticos e verdadeiramente de espírito público.

 

Enquanto o interesse mesquinho do ego e vaidade dominar tanto a população brasileira quanto as classes económicas e políticas, mais Bolsonaro irá se beneficiar. E mais o Brasil se transformará no longo prazo.

 

Obrigado pela leitura,

 

 

Sasha Lamounier

Jornalista e Mestrando em Comunicação Política

Porto, Portugal – 18 de Janeiro de 2021