COMO CHEGAMOS AONDE ESTAMOS?
A
GÊNESE DE UMA CRISE COMUNICACIONAL
INTRODUÇÃO
Quem acompanha
meus textos sabe que já escrevi análises socioeconómicas e políticas, onde
tentei explicar as razões pelas quais chegamos neste ‘estado de coisas’. Mas
nem a economia ou a política sozinhas respondem a pergunta fundamental. Para
entender como chegamos aonde estamos, é preciso analisar a comunicação
política, que desde 2013 (principalmente) vem modelando a realidade brasileira
diariamente.
No paradigma das
redes sociais - e da quebra de monopólio da narrativa que as grandes empresas
de comunicação detinham até meados dos anos 2000 - o caleidoscópio de
interpretações se difundiu como nunca antes visto. A crise que vivemos é, essencialmente,
uma crise de caráter simbólico e informacional. Para entende-la, temos de
retroagir um pouco no tempo e compreender como a passagem de um mundo pautado
pela informação analógica e vertical passou para uma informação digital e
horizontal e quais foram os impactos desta mudança na vida nacional.
DO
ANALÓGICO AO DIGITAL
Acesso à tecnologia
De acordo com o
PNAD 2008, dos domicílios da amostra daquele ano, cerca de 94% possuíam pelo
menos uma TV há cores. Enquanto 89% possuíam Rádios. O acesso a Internet, neste
PNAD, constituía apenas 24% dos domicílios brasileiros. Portanto, em finais da
década de 2000, era notória a importância dos meios analógicos na vida do
brasileiro, que se informava preferencialmente através dos grandes meios de
comunicação. Já segundo o PNAD 2011, o acesso a Internet aumentou para 36% dos
domicílios e, desde então, este processo só vem se aprofundado.
De finais dos
anos 2000 e início dos anos 2010 para cá, dois momentos específicos marcaram
esta transição tecnológica, durante o Governo Lula. Primeiro, foi com o decreto
de adoção do modelo SBTVD (Sistema Brasileiro de Televisão Digital), que
permitiu que o país fosse beneficiado com um sistema de transmissão digital de
TV em todo o território nacional. O segundo, e mais importante para o caso
deste texto, foi o Plano Nacional de
Banda Larga (PNBL), que visava principalmente massificar o uso da banda
larga de Internet até 2014 (ano em que se realizaria a Copa do Mundo no
Brasil).
Importante
destacar aqui que quando falamos do avanço da utilização da Internet no Brasil
estamos falando de duas coisas. Primeiramente, do tipo de conexão. Quando se
tratava de Internet discada, os dados computavam apenas aqueles que detinham
linha telefónica em suas casas e, através de um serviço da operadora, também
acesso a Internet. Com a profusão da banda larga, especialmente em cidades e
regiões mais pobres, o acesso começou a se popularizar, de modo a incluir mais
pessoas ao ambiente virtual. Soma-se a isso o barateamento dos aparelhos de
telefone móvel conectados à Internet e teremos um mapa da malha digital
brasileira.
Segundo Lemos e
Marques (2012), o acesso a Internet foi aumentando exponencialmente a partir da
privatização das telecomunicações. Em Julho de 2011, de acordo com o Ibope
Nielsen Online, o Brasil tinha 58 milhões de pessoas conectadas a Internet
(considerando como pontos de acesso o trabalho e os domicílios, banda larga e
discada). Um ano antes, em Janeiro de 2010, o país contava com 47 milhões de
pessoas conectadas. Ou seja, novos 11 milhões de consumidores ganharam acesso
em apenas um ano de implementação do PNBL (que iniciou-se em 2010).
Vale destacar
também que entre 2010 e 2011 o país viu crescer o número de consumidores com
telefones móveis conectados à Internet. Em 2010 estes consumidores representeavam
5% (5 milhões de pessoas), enquanto em 2011 pulou para 17% (cerca de 18 milhões
de pessoas). De acordo com o Centro de Estudos sobre as Tecnologias da
Informação e da Comunicação (Cetic), dos 25 mil lares pesquisados no estudo de
2012, constatou-se que 45% possuíam computadores. Destes, 79% possuíam desktops
(computadores de mesa), enquanto os portáteis (notebooks) constituíam 39%. Em
comparação a 2008, essa diferença diminuiu, visto que naquele ano 95% dos lares
possuíam computadores de mesa apenas.
O PNBL, por sua
vez, inicialmente previa a implementação de Banda Larga em 100 cidades concentradas
entre Sudeste e Nordeste, que tivessem menor IDH e com menor densidade de banda
larga. O objetivo, apesar de críticas quanto ao engessamento do mercado e de
falhas nas fibras, o que impediria uma velocidade maior de Internet, foi
alcançado. Para além das metrópoles já conectadas, cidades do interior acabaram
entrando no conjunto, fazendo com que a malha digital do país se aprofundasse
sensivelmente.
Redes Sociais
Em 2011, de cada
4 internautas brasileiros, 3 utilizavam o Orkut, 1 o Facebook e menos de 1 o
Twitter, mostrando que esta rede social (Orkut) era, 10 anos atrás, a mais
popular no Brasil. O site era visitado por 32 milhões de usuários. Em 2011 o
país tinha 58 milhões de pessoas conectadas e, destas, 32 milhões acessavam o
Orkut, o que significa que 55% de todos os internautas do país usavam esta rede
social. O Orkut acabou oficialmente em 2014, forçando muitos brasileiros a
migrarem para o Facebook.
O Google criou o
Google Plus mais tarde, como forma de estabelecer uma concorrência mundial com
o Facebook, que era a plataforma que mais crescia até então. A compra do Orkut
pela Google mostrou-se insuficiente e a Google Plus também não surtiu efeito,
fazendo com que o Facebook sobrasse como praticamente um monopólio no mercado
das redes sociais. Em 2013 (ano das grandes manifestações), o Brasil tinha 85
milhões de brasileiros conectados à Internet (quer seja através de desktops,
notebooks ou celulares) e, destes, 67 milhões estavam registrados no Facebook.
Portanto, representavam cerca de 79% de todos os internautas brasileiros.
Se formos
colocar isto em um gráfico, desde 2011 até 2019, onde a Internet plenamente se
estabeleceu no país, teríamos o seguinte quadro geral:
Quanto ao acesso
por aparelho, a distribuição está despojada do seguinte modo:
Já quanto ao
crescimento de perfis brasileiros no Facebook, o gráfico a seguir demonstra que
ele foi quase exponencial. Entre 2010 e 2011, por exemplo, a rede social saltou
de apenas 9 milhões de utilizadores registrados para 35 milhões. E este número
nunca mais parou de crescer.
Percebe-se,
portanto, uma mudança gradual, porém constante, no modo como o brasileiro
interage e recebe informação. Se em 2008 apenas 24% da população (ou 46 milhões
de brasileiros) estavam conectados e, destes, a maioria utilizava o Orkut como principal
rede social, 10 anos depois, estes dados mudaram drasticamente. Em 2019, o país
contava com 169 milhões de brasileiros conectados a Internet. E destes, 120
milhões estavam registrados no Facebook, representando uma fatia de 71% de
todos os internautas do país.
A principal fonte
primária de informação do brasileiro ainda se mantém entre as comunicações
tradicionais (TV, imprensa e rádio). No entanto, a Internet e as redes sociais
difundiu uma nova forma de lidar com a informação que, até então, não era
possível. É o que veremos a seguir.
MUNDOS
VERTICAIS E HORIZONTAIS
Quando se fala
em comunicações tradicionais, nos referimos aos órgãos de imprensa que,
oficialmente, representam a fonte noticiosa de toda e qualquer informação. Sem
intermediários não-oficiais. Em tempos analógicos, isso se referia as empresas
ou instituições que forneciam informação ao consumidor final. São os grandes
jornais, as grandes emissoras de TV, as grandes rádios e suas filiais espalhadas
pelo país. Este modelo de comunicação imperou no Brasil até 2011, quando a
Banda Larga começou uma verdadeira revolução comunicacional no país.
Antes de a
Internet dominar a estrutura informacional do Brasil, era a televisão a
principal plataforma. A contar desde a fundação da TV Tupi, em 18 de Setembro
de 1950, foram basicamente 61 anos de domínio quase absoluto. Antes dela, eram
as rádios e os jornais (e revistas) impressos que dominavam o mercado. A rádio,
inclusive, tem a sua data de nascimento marcada pelo 7 de Setembro de 1922,
onde se comemorava o centésimo aniversário da independência do país. E, antes
dele, a imprensa, que tem sua data de começo marcada pelo lançamento do jornal
Gazeta do Rio de Janeiro, em 10 de Setembro de 1808 (Jardim & Brandão –
2014). Portanto, temos ai o domínio da comunicação analógica e verticalizada,
que perdurou desde o jornal Gazeta até o PNBL em 2011 (ou seja, cerca de 203 anos).
O Brasil
tornou-se independente em 1822, pelas mãos de D. Pedro I e seu famoso Grito do
Ipiranga. Porém, o processo de formação da nação brasileira começou
oficialmente quando D. João VI trouxe, junto às cortes em 1808, várias
instituições de Estado para se instalarem no Rio de Janeiro. Foi com ele que a
imprensa surgiu. E foi também com a imprensa que as elites letradas começaram a
se organizar e a difundir ideias, fossem elas liberais, conservadoras,
independentistas ou monarquistas. Falar dos Estados Nacionais é, em grande
medida, falar da história da comunicação. Afinal, como indica Harold Innis em
sua obra Empire and Communications
(1950), as plataformas de difusão de informações estão diretamente relacionadas
com a lógica dos impérios e civilizações.
Diz ele que
comunicações de tempo, aquelas que servem para durar dinastias e vencer gerações,
são plataformas estruturantes de civilizações. Tratam-se das artes rupestres,
dos hieróglifos nas pirâmides egípcias ou ainda, das pedras de Stonehenge. Elas
abarcam pequenos espaços, mas perduram um longo tempo. Comunicam ideias e
símbolos transversalmente entre as gerações. Já as comunicações de espaço, cujo
objetivo é atingir grandes áreas e fortalecer um governo central, são aquelas
que Innis denomina como comunicações de império. O papiro foi um deles, a
imprensa de Gutenberg foi outro, a rádio é outra e a TV também.
Neste sentido, o
percurso das nações e o desenvolvimento dos povos em torno de Estados
centralizadores nada mais é do que um processo de difusão e concentração de
comunicação. Afinal, como um Rei poderia deter controle sobre uma província
longínqua se ele não tivesse capacidade de rapidamente comunicar suas decisões
aos povos dominados? Ainda que o “rapidamente” consistisse em meses de viagens,
o fato é que o poder simbólico do Rei estava presente em suas insígnias, nas
moedas, nas espadas, nos estandartes e nos seus brasões. E isso, por si mesmo,
era uma comunicação de império.
Todas estas plataformas,
voltando para as clássicas comunicações do século XIX e XX (TV, rádio e
imprensa), ainda possuíam uma coisa em comum: eram plataformas verticais. Ou
seja, a informação saía das fontes noticiosas e atingia o público numa via
única de emissor-receptor. Por mais que uma notícia de um jornal pudesse gerar
impacto social, este impacto era previsível para o emissor. Ele sabia que
determinados tipos de palavras, ou a estrutura do enquadramento da informação,
poderia gerar mais ou menos impacto a depender do público. A isso a Teoria da
Comunicação chama de Agenda Setting (McCombs e Shaw, 1972).
É daqui que vem
a ideia da imprensa ser o ‘quarto poder’. Pois a publicidade oficiosa dos
órgãos de Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário), tinham de lidar com uma
quarta fonte de informação oficiosa (a imprensa). Idealmente, o papel da
imprensa era o de moderar o poder estatal e fornecer ao povo informações de
interesse público. A liberdade de imprensa é importante justamente por conta
deste princípio-valor do jornalismo. O problema surge quando os órgãos de
imprensa confabulam com o Estado ou com grandes poderes e interesses
económicos.
Quando poucos
meios de comunicação determinam aquilo que o público recebe de informação, ele
está criando um lugar-comum pelo qual todos os receptores da informação terão
de lidar de maneira incipiente. Ou seja, um determinado evento político, desde
que devidamente enquadrado pelo agendamento das redações dos principais jornais,
seria interpretada pela população de acordo com aquele enquadramento (Marco
Bruno, 2014). No Golpe de 1964 foi basicamente assim. Todas as grandes mídias
se uniram num mesmo enquadramento da notícia em apoio ao novo regime. Não
anunciaram que um ‘golpe de Estado’ havia sido dado, mas sim que uma
intervenção militar ou revolução havia chegado para democratizar o país e por
ordem na casa.
As gerações que
viveram todo o período da Ditadura e chegaram a Democracia viveram, na verdade,
a era da comunicação de massas analógicas pautadas pelas grandes emissoras de
TV (Globo, em especial, fundada em 26 de Abril de 1965) e de rádio e imprensa.
Ao contrário dos Estados Unidos, onde a mídia formadora de identidade nacional
foi o cinema desde meados dos anos 1910 (Primeira Guerra Mundial), no Brasil
foi a Rádio e a TV as principais plataformas que ao longo de todo o século XX contribuiriam
para a formação de uma imagem simbólica nacional.
Estas imagens
simbólicas, ou ainda, os lugares-comuns produzidos no século XX,
fundamentalmente dependiam dos interesses por detrás de cada instituição de
comunicação. Sem entrar no mérito, tanto a democracia quanto os regimes ditatoriais
se beneficiaram da Rádio e TV no século XX, de modo que não podemos culpar os
meios de comunicação por um ou outro desvio de princípio. A política das
nações, em todo o mundo, dependeu dos meios de comunicação. E o Brasil não
ficou imune a isso.
Portanto, as
comunicações verticais (de cima para baixo) e analógicas tinham a sua própria
forma de ser e ter. Ser brasileiro, no século XX, era estar representado na
grande imprensa, era estar representado nos livros de história oficial, era
estar integrado a todos os símbolos e referências que de cima para baixo nos
eram impostas. O receptor, o povo, era a parte passiva deste processo,
respondendo aos símbolos e não produzindo novos símbolos a partir de fontes
terceiras. Nesta natureza de comunicação, havia também a ideia de um mundo mais
estruturado. Tratava-se, evidentemente, da era estruturalista, que mais tarde
os pós-modernistas contraporiam com o conceito de pós-estruturalismo.
O advento da
Internet (e em especial das redes sociais) significou uma revolução neste
paradigma. Pois a lógica vertical deu lugar ao digital e ao horizontal. Não se
tratava mais de interpretar símbolos e informações enquadradas por instituições
sólidas e estruturadas. Mas sim, de interpretar a realidade local (e noticiada)
sobre o olhar do comum, do outro, daquele que partilha a informação e com quem
você (o leitor) tende a concordar. O poder da Internet foi o de pulverizar os
meios de comunicação tradicionais em vários pequenos pedaços de verdade que
podem, agora, serem transformados em verdades paralelas. E as redes sociais,
por seu turno, potencializou isso ao formar as bolhas de informação, na qual a
tendência é dividir o espaço simbólico individual com as suas ‘tribos’.
Não sendo mais
uma estrutura vertical, não existe também a figura de
autoridade qua determina o que é verdadeiro e o que é falso. A própria verdade
está em xeque (Pós-Verdade, Ignas
Kalpokas), e o lugar-comum não existe mais. A imprensa continua exercendo o seu
papel, mas agora ela não possui o monopólio da comunicação. Ela precisa
concorrer com as várias narrativas e enquadramentos que povoam o ambiente
virtual todos os dias, nas mais variadas plataformas (Facebook, YouTube,
TikTok, Instagram, Twitter, WhatsApp, Discord etc.). Como o fluxo de informação
é constante e ininterrupto (pois sempre tem alguém conectado e publicando
informação), o público não consegue acompanhar o ritmo e acaba sendo obrigado a
fazer sua própria agenda. Esta agenda, determinada pelos valores e princípios individuais,
advindos das experiências pessoais de vida e dos círculos de amizade, é o que
determinarão o que é e o que não é verdade. Determinarão o que é ou não válido.
LAVA
JATO, LULA, BOLSONARO E O FUTURO DO BRASIL
Entre 2003 e
2010 o Brasil viveu os dois governos Lula, que foram anos onde crescimento
económico, ambiente internacional favorável e políticas sociais fizeram com que
surgisse a ‘nova classe média’, composta por muitos brasileiros pobres que
começaram a melhorar de vida a partir do começo dos anos 2000. Neste período,
houve uma difusão tanto de crescimento do consumo (o que ajudou a fazer dos
serviços o principal componente do PIB brasileiro), como também estimulou o
sentimento geral de bem-estar.
Entre 2011 e
2014 o Brasil viveu o primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, herdeira
política de Lula e representante deste momento de transição do qual falamos na
primeira parte do artigo. Se Lula propiciou o surgimento da nova classe média e
também aprofundou o desenvolvimento da banda larga no país (fazendo com que
esta nova classe média também se conectasse), os elementos negativos de seu
governo (entre eles endividamento das famílias e os efeitos da crise
internacional do subprime) começaram a dar sinais de vida. Dilma teve dois anos
de governo pacíficos (2011 e 2012). Mas foi em 2013 e as manifestações
iniciadas pelo aumento da tarifa dos ônibus que as coisas começaram a mudar. A crise teve vários motivos diferentes. Alguns ocacionados por fatores externos e outros por erros do próprio governo Dilma.
O Brasil tinha
conseguido o direito de sediar a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016,
resultado advindo dos anos de bonança na qual o país se destacou no mundo em
desenvolvimento. Havia um sentimento híbrido de insatisfação com o estado de
coisas que o país vivia e de excitação pelas promessas de futuro oriundas dos
anos 2000. É como se a população (especialmente a nova classe média) tivesse
construído para si um arcabouço referencial que estava começando a mostrar
dificuldades de se realizar no começo da década de 2010. Parte das
manifestações de 2013 podem ser explicadas por isso, embora não completamente.
Para entender o
Brasil pós-2013 é preciso compreender o impacto da Internet e das redes sociais
na vida do brasileiro. Como vimos, ao passo que o brasileiro foi se conectando,
ele também tendia a adotar alguma plataforma social na qual pudesse interagir
com seus conhecidos e fazer novas amizades. E isso coincidiu com alguns
pequenos impactos da crise internacional e a insatisfação popular com o ‘estado
de coisas’ que o país sempre viveu. A insatisfação só pode ser entendida a
partir do choque entre idealização e realidade. A nova classe média e também a
classe média tradicional detinham um futuro idealizado que se mostrava difícil
de realizar. Usaram as redes sociais para manifestar este sentimento, que em
2013 foi represado como um sentimento ‘anti sistémico’.
Em 2014
começaram a surgir elementos de instrumentalização da população pelas redes.
Think Tanks internacionais (entre eles o Students
for Liberty), influenciadores políticos (como Olavo de Carvalho) e partidos
(como o PSDB e o incipiente NOVO, mas também o PT, através do Mídia Ninja)
iniciaram uma guerra por pautar as massas. Pequenos grupos intervencionistas
também despontavam, mas muito diminutos frente aos demais. Também em 2014
iniciava a Operação Lava Jato, que colocou ainda mais combustível numa insatisfação
popular que já vinha se construindo desde 2013. A derrota humilhante na Copa do
Mundo (o famoso 7x1 com a Alemanha) e o ambiente eleitoral fez com que as
narrativas horizontalizadas nas redes se polarizassem entre um ‘eles contra nós’.
Eles, neste caso, era o PT e as ideias arcaicas advindas do macarthismo
norte-americano. O nós eram os defensores das liberdades, da moralidade e dos ‘bons
costumes’.
A Lava Jato, que
de início não tinha um alvo em concreto, começou a representar este grupo que,
polarizado diante de um partido que já governava o país por 11 anos naquela altura,
via nos escândalos de corrupção a falência do sistema político brasileiro. Esta
falência, que diferentes classes sociais interpretariam a sua maneira, poderia
ter mais ou menos impactos económicos, mas todos eles tinham impactos sociais.
O PT não servia mais, para este grupo, como promotor do bem-estar que a nova
classe média e a antiga classe média tanto almejavam para si. Aqui, é
importante frisar que há estudos interessantes sobre como cada classe
interpretou estes eventos à luz de suas esperanças e preconceitos (A Elite do
Atraso, de Jessé de Souza, 2017).
A grande imprensa, que por muito sempre representou os interesses de elites e
da classe média tradicional, adotou um tom panfletário em favor da Lava Jato e
do combate a corrupção no país. Sem escolher alvos, mas com grande tendência ao
não-governismo, a imprensa alimentou a polarização nas redes com uma cobertura
constante e espetacularista dos
eventos das investigações. A eleição de 2014, uma das mais acirradas da
história da democracia brasileira, acabou com Dilma Rousseff reeleita por uma
pequena margem. O PSDB do então candidato Aécio Neves saia derrotado, porém,
polarizado. Foi a partir de 2015 que a Lava Jato adotou um tom mais
anti-petista e favoreceu as narrativas macarthistas fecundas nas redes desde
2013.
Sérgio Moro
tornou-se símbolo de moralidade, enquanto Lula e o PT tornou-se símbolo de
vilania. O pêndulo narrativo novelesco entre o bem e o mal se estabeleceu,
visto que apesar das sociedade brasileira estar conectada, ela ainda era
extremamente estruturalista devido as décadas pregressas a revolução digital de
2011. Com o Jornal Nacional narrando uma história em tom quase literário, o
escopo jurídico da operação Lava Jato e mesmo do pedido de impeachment de Dilma
Rousseff perdeu-se completamente. O povo, em sua maioria, não buscava
esclarecimento. Mas entretenimento. A vida política nacional tornou-se apenas
uma diversão, um modo de unir grupos nas redes e de dar sentido a um futuro
incerto e cada vez mais fragmentado.
Foi neste
contexto onde Moro cometeu ilegalidades e saiu impune. Foi neste contexto onde
prisões arbitrárias foram cometidas. Foi neste contexto onde um impeachment mal
feito aconteceu. Foi neste contexto onde as Forças Armadas começaram a surgir
(em paralelo a juízes e promotores), como os tuteladores da pátria. A descrença
no sistema político só se agigantava, ao passo que a Lava Jato dava a entender
que ‘todo mundo era corrupto’. O sentimento de terra arrasada, aliado a
insegurança das cidades, com a crise económica e com a polarização política, ajudava
a distanciar o país de qualquer solução palpável. Esta tutelagem das Forças Armadas
e a antipolítica, que se tornou fecunda a partir do Governo Temer, foi o que
acabaria lançando as bases da candidatura de Jair Bolsonaro.
E ai chegamos em
2018. Ano eleitoral, novamente. Com um país mais conectado do que nunca e mais
polarizado do que em 2014. Lula se candidata, mas condenado, tem seu Habeas
Corpus negado por um STF que recebeu, na noite do julgamento do HC, uma ameaça
do Comandante do Exército naquela altura, o General Eduardo Villas-Boas. Lula,
já preso, candidato até o TSE anular sua candidatura, acabou fazendo-se
representar por seu ex-ministro da Educação, Fernando Haddad. E a partir daqui
o leitor já deve se lembrar da história. Numa eleição sem recursos financeiros
para campanha de TV, mas usando e abusando das redes sociais, Bolsonaro
conseguiu se colocar como um nome competitivo. Após a facada em 06 de Setembro
de 2018, ele tornou-se favorito.
O que temos
vivido desde 2018 para cá é apenas o aprofundamento deste contexto. Durante o
governo Bolsonaro, no entanto, algumas coisas se reverteram. Lula voltou a ter
seus direitos políticos, Sérgio Moro (que tornou-se ministro da justiça de Jair
Bolsoanro), não apenas saiu do governo como foi declarado parcial, suspeito,
pelo STF diante dos casos do Lula na Lava Jato. O país se polariza mais com um
governo radicalizado desde o primeiro dia. Vem a pandemia, e nada sugere
qualquer retorno ao Brasil de 2012. De modo que entender como chegamos aonde
estamos não é dar uma resposta sobre para onde iremos, mas é apresentar um mapa
que pode nos indicar o que precisamos fazer.
Sem entrar no
mérito económico ou político, fato é que a revolução digital de 2011 mudou a
estrutura sociopolítica do Brasil. As foças ideológicas e políticas estão nas
redes, usando e abusando da manipulação de narrativa para impor os seus quadros
de verdade. A grande imprensa tenta sobreviver diante da fragmentação de
narrativas e o Estado não possui mais a capacidade de oficiosamente definir
soluções. Governar, hoje, significa dialogar com as redes. Informar, hoje,
significa estabelecer prioridades e dividir espaço com as redes. Fazer política,
hoje, significa entender o outro e entender a si mesmo.
Pois sendo uma
crise de cunho comunicacional, não será fora da comunicação que iremos resolver
qualquer problema que tenhamos. Não é aprofundando bolhas, ou favorecendo
mecanismos de validação de narrativas, que iremos pacificar o país. O Bolsonaro
pode perder uma eleição, mas o bolsonarismo veio para ficar. Do mesmo modo o
lulismo, o lavajatismo, e qualquer outro ‘ismo’ que surja eventualmente dado o
estado de coisas do país. Poucos, ou quase ninguém no Brasil compreende estas
questões. É tudo ainda muito novo. A maior parte da população tem uma
mentalidade estruturalista numa sociedade pós-estruturalista. Muitos ainda
pensam de forma analógica e vertical, num mundo digital e horizontal. As novas
gerações, os nativos digitais, já nascerão num mundo sem nenhuma referencial ou
lugar-comum que os diga o que é universal e o que não é.
A tendência é
que o futuro da sociedade seja necessariamente mais fragmentada. Aonde ficarão
os símbolos nacionais e a identidade nacional do país? Eu não sei responder. Por
um lado, temos as Forças Armadas representando um tipo de Brasil. Por outro,
temos as esquerdas representando outro tipo de Brasil. As pautas identitárias
serão o modus operandi da política brasileira daqui para frente, como já o é
nos Estados Unidos. Tais pautas identitárias, chamadas de pós-materialistas
(Inglehart, 1977), fazem sentido em sociedades onde as questões materiais
(emprego, renda, infraestrutura etc.), já tenham sido resolvidas em grande
medida. Mas no Brasil, onde nem as questões materiais estão tratadas, viver
apenas de identitarismo me parece uma receita para o fracasso.
Ou saibamos
construir um novo simbolismo nacional, que nos unifique a todos, ou a própria
ideia de um Brasil não existirá. O ‘Estado-Nação’ vai se tornar apenas um
Estado, que forçosamente une um monte de ‘pequenas nações’ pelo pragmatismo da
economia e da segurança coletiva. Mas representatividade, ideal de nação,
futuro referencial coletivo, estas coisas que não vejo como existir se uma nova
estratégia de comunicação nacional não for empreendida a partir deste novo
paradigma.
Obrigado pela
leitura,
Sasha Rupar Lamounier
van Lammeren
Jornalista e Mestrando
em Comunicação Política
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