28/04/2015

Entre Dogma e Realidade




Entre Dogma e Realidade

Por

Sasha Lamounier


Em seu livro “Fundamentos da Liberdade”, no Capítulo IV - Liberdade,  Razão e Tradição - página 55 (1 As duas tradições de liberdade) [1], Hayek afirma que há duas tradições iluministas. A inglesa (dita empirista) e a francesa (dita racionalista), da qual o libertarianismo teria origem. O liberalismo, segundo Hayek, seria totalmente fruto da tradição inglesa.

O equívoco dessa afirmação se mostra, em primeiro lugar, no fato de não existir clara divisão entre liberais franceses e ingleses. Se por tradição inglesa entendemos o empirismo e francesa o racionalismo, há de se notar que durante o período de desenvolvimento das teses liberais tanto pensadores ingleses quanto franceses, de ambas as tradições, se influenciavam mutuamente. John Locke influenciou Voltaire que influenciou Adam Smith que por sua vez influenciou Bastiat. Ou seja, o eixo aqui não é nacional e nem principiológico: todos os liberais citados tinham por base os mesmos princípios.

Hayek se lembra disso, mas aponta para a diferença metodológica. Locke (junto de Hume) é considerado o pai do empirismo, e por isso não poderia ter tido conclusões racionalistas. Contudo, isso não é completa verdade. O empirismo de Locke e Hume era também racionalista. Não havia divisão! Popper (Lógica do método científico) [2] notou isso (página 27, O Problema da Indução), demonstrando o erro da não falseabilidade dos experimentos dos clássicos empíricos. Uma amostra singular não pode representar uma verdade universal indutiva, visto que isso seria um salto lógico sem evidências, portanto, puramente racional.

Antes de Popper, inclusive, Kant já havia feito críticas tanto ao empirismo (Crítica da Razão Prática) quanto ao racionalismo (Crítica da Razão Pura).

Portanto, é simplesmente falso de que havia distinção entre racionalistas e empiristas. Os liberais clássicos eram, na verdade, ambos. O empirismo inglês fundado com Locke e Hume não era “100% empirista”. Do mesmo modo Descartes, o matemático francês, não era 100% racionalista. Em ambos os casos a prática, a evidência e a conclusão lógica se mostravam notavelmente. 

Um exemplo prático é diferença entre as teses do contrato social em Locke e em Rousseau. No inglês, trata-se de uma visão fundamentalmente empírica, porém, com conclusões racionalistas, visto que não era possível pela evidência, fazer uma conclusão da parte para o todo. Rousseau, por outro lado, tem uma visão fundamentalmente racionalista, porém que se baseia na realidade de sua sociedade (empirismo) para chegar as conclusões lógicas.

Liberalismo clássico é, portanto, uma escola que inclui iluministas da tradição francesa e inglesa. Contudo, não há “liberalismos” diferentes, mas apenas um: o clássico. Pode-se afirmar que houve Iluminismos diferentes. Mas não liberalismos.

Após os clássicos, surgem diversas outras teorias econômicas e políticas, originadas todas elas do filho primogênito do iluminismo: o liberalismo. E do liberalismo surgirá nacionalismo, socialismo, libertarianismo, marxismo, anarquismo e assim por diante.

Evidente que uma tradição racionalista foi surgindo na França oitocentista gradativamente. Também por isso pode-se afirmar que a França é o grande celeiro do socialismo e anarquismo. Mas no princípio, quando os iluministas trabalhavam ainda em seu primeiro filho (o liberalismo) não havia esta cisão intelectual clara. Empiristas e racionalistas se influenciavam mutuamente e somente com o tempo que cada tradição foi ganhando um escopo mais definido e rígido.

O “novo liberalismo” pode ser compreendido como a escola liberal surgida dos racionalistas puros. Estes, por sua vez, são aqueles fundamentados em teses apriorísticas, sem qualquer evidência na realidade. Com o marginalismo, surgem as doutrinas econômicas racionalistas. E através deste movimento, surgiria um liberalismo dogmático, mais tarde conhecido como libertarianismo. Aqui nasce o minarquista libertário, surge o anarco-capitalista e toda a interrupção do processo liberal.

Por parte da tradição empírica, sobrariam evidentemente os clássicos (empíricos e racionalistas), mas também os ordoliberais e neoliberais (Milton Friedman, Hayek).

Libertarinaismo (assim como o nacionalismo, anarquismo, socialismo etc) não usam do método científico, da empiria, para classificar suas teses políticas. E raramente usam para suas teses econômicas. Neste sentido surge uma cisão.

Hayek aponta para uma cisão anterior, ainda no período clássico. O que, como citado nos primeiros parágrafos deste artigo, não é verdade. A cisão ocorreria com o movimento marginalista e criaria de um lado liberais clássicos (empíricos e racionalistas) e de outro libertários (somente racionalistas).

Por isso os liberais clássicos são conhecidos como necessariamente pragmáticos, pois usa da evidência, da realidade para buscar sua meta de liberdade individual máxima, livre mercado e governo mínimo. Já os libertários são dogmáticos, pois acreditam numa ética racional superior e que deve ser buscada independente das práticas. Perto da esquerda (anarquistas e socialistas) estão, portanto, os libertários, que utilizam o mesmo método de raciocínio para chegar a suas conclusões de inverossimilhança.

Por Sasha Lamounier
Um Liberal Clássico


Porto – Portugal
29 de Abril de 2015


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[1] http://www.libertarianismo.org/livros/fahofdl.pdf

[2] https://ocondedemontecristo.files.wordpress.com/2011/05/popper-karl-a-logica-da-pesquisa-cientifica.pdf






26/04/2015

Liberalismo Clássico: uma vocação progressista



Liberalismo Clássico: uma vocação progressista

Por

Sasha Lamounier


Muitos confundem o liberalismo clássico com o conservadorismo. Tomados por uma interpretação superficial dos contextos históricos, diversos autores e pensadores tomam os liberais clássicos como conservadores moralistas cristãos, que se vistos hoje, estariam distantes do ideário liberal clássico e mais afeitos ao liberalismo conservador.

Contudo, há aqui uma grave desvirtuação de atenção. Vamos tomar como ponto de partida para esta análise, Max Weber. Em sociologia compreensiva, Weber defende que as sociedades devem ser analisadas e observadas do ponto de vista DELAS. Ou seja, o observador não deve interpretar uma sociedade do ponto de vista de sua sociedade, mas deve tentar compreender o contexto e a composição da sociedade analisada.

E tendo isso como parâmetro, vamos analisar os pensadores clássicos, como John Locke, Adam Smith, Voltaire e Benjamin Franklin, só para ficar em poucos. Em primeiro lugar, o que eles questionavam, de forma unânime? A tirania. Todos em suas diversas obras têm como ponto em comum a contrariedade ao tirano, ao Rei absoluto que desrespeita o indivíduo, o ser humano. Isso era ser conservador? Para entender, vamos pensar no que era liberdade ANTES destes caras?

Em sentido estrito, porém eficaz, liberdade antes do liberalismo era respeitar a ordem divina imposta pelo dogma. Deus no céu, o Papa na Terra e os Reis como representantes do poder divino. Esse foi o ápice do absolutismo, exatamente na mesma época em que o iluminismo crescia como movimento intelectual. O iluminismo foi, basicamente, a segunda fase do renascentismo, época onde o protestantismo nasceu. E se os iluministas vinham desta tradição da renascença, onde filosofias clássicas (grega) eram retomadas pela Europa católica, então não eram bem “conservadores”.

Defender que o indivíduo deve ser respeitado apenas por ser um indivíduo e que o poder do Rei NÃO deriva de uma vontade divina, mas de um acordo social, é PROGRESSISMO. Então cabe perguntar: os liberais clássicos eram conservadores ou progressistas?

Se eles não tinham a mínima pretensão de preservar, de conservar o poder divino dos Reis, então evidentemente eram progressistas! Jamais conservadores. Os primeiros liberais eram cristãos, com certeza. Até porque saíam de tradições originadas na reforma protestante. E a reforma protestante foi cristã. Contudo, isso não significa que eram conservadores de qualquer coisa. John Locke, por exemplo, além de protestante, era também opositor do Rei Carlos II, junto de seu mentor político, Anthony Ashley Cooper, 1º Earl de Shaftesbury. Portanto, não há qualquer possibilidade de colocar Locke no seio dos conservadores, pois se há uma coisa que ele NUNCA FOI é “conservador”. Locke foi um progressista protestante, defensor da tolerância religiosa e das liberdades individuais. Se ainda restam dúvidas, fato inegável é que o Primeiro Tratado de Locke é uma refutação de “Patriarca”, obra de Robert Filmer onde o mesmo defendia o direito divino dos Reis.

Esta mesma atitude progressista encontraremos no escocês Adam Smith, no francês Voltaire e no norte-americano Benjamin Franklin. O que deveria ser óbvio para qualquer estudioso do liberalismo, não o é. E este desentendimento ocorre por um fato curioso: a não compreensão dos contextos históricos.

Analisados do ponto de vista de um homem do século XXI, John Locke pareceria um conservador. Defensor de moralismos tradicionais. O problema é que a tradição que Locke defendia começou EM SUA ÉPOCA. Logo, ele não era “moralista conservador”. Ele era um “moralista progressista”, que jogado no teste do tempo, tornou-se conservador. Mas tornou-se, pois 200 anos depois de John Locke a sociedade mudou muito. Aqueles que defendem tradições surgidas há 200 anos, hoje, são conservadores destas tradições.

Stuart Mill, pensador liberal do século XIX, é tido como o criador de um “liberalismo progressista”. Ledo engano... Mill viveu numa época onde surgiam os primeiros críticos do modelo liberal da época de John Locke. Surgem os socialistas clássicos, como Owen, Fourier e Saint Simon. Mill foi contemporâneo destes intelectuais e chegou a dialogar muito com eles, tendo de lidar com os primeiros ferrenhos críticos do liberalismo. Coube a Mill modernizar o pensamento liberal para o CONTEXTO social do século XIX. Isso não é tornar o liberalismo um progressismo, é apenas revitalizar um pensamento progressista aos tempos modernos. Daí a explicação para muitas das ideias de Mill contrariarem liberais mais antigos do que ele. Stuart Mill revisitou o liberalismo defendendo-o das críticas socialistas clássicas

Compreendido que o liberalismo clássico sempre foi progressista, cabe uma reflexão. O que é o liberalismo do século XXI?

Muitos conservadores defendem que temas polêmicos, como aborto, casamento homoafetivo, direitos das mulheres entre outras coisas são temas “anti-liberais”, pois não condizem com o pensamento dos pensadores originários do liberalismo. John Locke, o protestante moralista, jamais seria a favor do casamento homoafetivo, por exemplo. Isso quer dizer que todo liberal do século XXI (200 anos após Locke) deve ser contra o casamento gay? Evidentemente que não!

Se os pensamentos ficassem presos em suas épocas, John Locke não teria existido! E é importante compreender isso. Locke foi fruto da rebeldia de seu tempo. Tudo o que ele defendia era anti-moralista em sua época. Ser contra o poder divino do Rei, ser contra a religião do Estado, ser contra os súditos abaixarem a cabeça para o monarca, ser contra a submissão social ao monarca, isso era motivo de prisão. Tanto é que Locke exilou-se na Holanda com seu mentor por um bom tempo.

O liberalismo do século XXI tem dois desafios globais: compreender o mundo globalizado e lidar com a falta de zelo pelas ideias liberais, rotuladas e roubadas por uma esquerda revolucionária e violenta originada no século XX.

Se quisermos manter o liberalismo clássico puro e moderno, precisamos respeitar o contexto histórico em que vivemos e a tradição na qual o liberalismo nasceu. Todo liberal surge de um princípio: a defesa da liberdade. E esta liberdade muda, se retraduz no andamento natural da sociedade. Por isso é tão importante um retorno aos clássicos, mas sem nos esquecer de onde viemos. Não somos ingleses do século XVII ou XVIII. Somos brasileiros, americanos, africanos, chineses e assim por diante oriundos do NOSSO TEMPO. E devemos compreender isso a luz dos princípios defendidos por todos os liberais em todas as épocas: liberdade, vida e propriedade. Princípios base que jamais mudaram, não importando a era onde o liberal tenha nascido. 


Porto, Portugal - 26 de Abril de 2015.

Grato pela leitura,

Sasha Lamounier
Um Liberal Clássico