02/06/2014

A Condenação Moral da Pena de Morte




A CONDENAÇÃO MORAL DA PENA DE MORTE


Como prometido, eis meu artigo sobre a questão da pena de morte. Trata-se de um artigo que esclarece amplamente as razões e lógicas que me levam a ser contrário a todo tipo de pena capital, não importa se aplicado pelo Estado ou pelos homens “livres”.


Pena de morte: a vida como moeda de troca.

Quando se trata de pena de morte, estamos falando de um tema gritantemente mal compreendido por pseudoliberais e por anarco-capitalistas (que prefiro chamar de anarco-individualistas). Em volta deste tema, há em primeiro lugar a necessidade de justiça. Frente a um crime hediondo, seria legítima a morte do marginal? O que fundamenta isso? Se não seria, por qual motivo?

Em debates pela Internet, nunca há uma clara visão dos argumentos defendidos por todas as partes. Na verdade, muitos são a favor e outros são contra sem ao menos se dar conta dos motivos que os levam aos seus raciocínios. Para compreender perfeitamente as razões contra e a favor da pena de morte, precisamos entrar em outra discussão ainda mais séria e profunda. Afinal, existem leis naturais? Ou a sociedade é quem determina as regras do jogo? Como alcançar o bom convívio social entre todos seus agentes?


Utilitarismo x Jusnaturalismo

O debate referente à penalidade da morte ao criminoso perpassa por duas vertentes filosóficas que, diretamente, influenciam o liberalismo e consequentemente o próprio anarco-capitalismo: trata-se do utilitarismo versus jusnaturalismo.

O utilitarismo se fundamenta no bem-estar geral da sociedade, tendo como base a ação de algo e sua consequência. A lei natural (ou jusnaturalismo) propõe que há características na vida humana que não são determinadas por vontade do homem, sendo, portanto, inerentes à qualidade do ser. Estas duas vertentes acabam criando desentendimentos filosóficos profundos entre a defesa moral da pena de morte e a sua condenação. Por um lado, para os defensores da pena de morte, seria legítima a morte de um assassino, pois ele é um mal para a sociedade e deve, por isso, pagar na mesma moeda aquilo que ele causou de negativo a outro indivíduo.

Já para o jusnaturalista, a morte não é algo que deve ser considerado pela vontade ou razão humana de bem-estar, visto que o ser humano nasceu com características naturais inerentes ao seu ser. A própria racionalidade humana deriva destas características naturais. Para o jusnaturalista, o homem nasce com vida e esta vida é por si mesma, um princípio maior que deve ser defendido sempre, mesmo para o mais cruel dos bandidos.

O utilitarismo é uma corrente filosófica que surgiu através de mentes brilhantes, como Stuart Mill e Bentham (seu fundador). No entanto, seu surgimento tinha mais como intenção fundamental organizar a vida em sociedade tendo como base uma busca pelo bem estar geral de todos os indivíduos. Sendo assim, o utilitarismo sozinho não é uma corrente filosófica que defende a pena de morte, pelo contrário. Podem-se usar argumentos utilitaristas para condenar a pena de morte. O que os defensores da pena capital aproveitam do utilitarismo é tão e unicamente o fundamento do bem estar geral.

Já o jusnaturalismo é um pouco mais antigo, tendo surgido ainda na Idade Média, através de outras mentes brilhantes como São Tomás de Aquino e posteriormente Hobbes e John Locke (este último, um dos grandes pais do liberalismo clássico). A lei natural é simples e lógica. A vida social exige que certos preceitos humanos sejam garantidos para que, necessariamente, exista bom convívio entre os indivíduos. A lei positiva existe para preservar o que a natureza logrou ao homem. Logo, a lei positiva é derivada da lei natural e não de uma “vontade” humana. Ao contrário do que os críticos do jusnaturalismo dizem a lei natural não depende da razão humana para existir, visto que a lei natural antecede o próprio ser humano, sendo ele apenas um receptor darwiniano das potências garantidas pela biologia natural do ser.


Para o jusnaturalista, existem três princípios naturais a serem respeitados: vida, propriedade e liberdade. Notadamente, são também estes três princípios que fundamentam todo o corpo filosófico do liberalismo clássico e moderno (o chamado libertarianismo). Vale lembrar que o jusnaturalismo fundamenta, também, o próprio anarco-capitalismo. Sem a defesa moral destes três princípios, não existiriam outros, tais como livre mercado, ordem espontânea, liberdade de pensamento, liberdade de expressão, democracia etc.

O utilitarismo, curiosamente, é a filosofia menos liberal entre as duas. Na verdade, alguns intelectuais costumam referenciar o utilitarismo como a defesa moral do Estado e do socialismo. A ideia de que uma ação só é moral se causar felicidade a outro pode levar a equívocos temerários. O que é felicidade? Se a própria ideia de felicidade é relativa, então o conceito de moralidade do utilitarista é igualmente relativo. Quem bateria o martelo para decidir o que é ou não moral? Só se for o Estado ou o indivíduo mais forte. Nesse sentido, o utilitarismo contraria a lei natural, pois não é a natureza que exerce influência na vida social e normativa do homem, mas sim a vontade de felicidade do ser humano e sua busca incessante por ela.

Então temos duas vertentes bem claramente definidas. O utilitarista, que defende a moral da felicidade, ou do bem estar geral da sociedade. E temos o jusnaturalista, que defende as características inatas da vida humana.

Este específico debate entre ambas as correntes é bastante amplo e para dissecar perfeitamente seria necessário escrever um livro. E talvez em vários volumes. Como este artigo é uma dissertação sobre as razões que levam seu autor a contrariar a pena de morte, não iremos nos aprofundar tanto agora.


Uma questão de princípios

Como já dito anteriormente, a defesa ou condenação da pena de morte é principiológica. Aqueles que defendem a pena capital só o fazem por crer que aquele assassino não é mais útil à sociedade após o crime cometido. Anarcoindividualistas podem alegar que a família da vítima morta, por exemplo, teria o direito particular de vingar a morte de seu ente querido através de uma penalidade brutal contra o marginal.

Qual é a moral desse raciocínio? É utilitarista! Mas se é utilitarista, não é mais jusnaturalista. Então o equívoco começa a ser de coerência. Existem duas correntes famosas que já defenderam abertamente o “descarte” de seres “inúteis para a sociedade”. São elas o comunismo e o nazismo. Ambas com concentrado poder estatal. O anarco (!) capitalista que defende a pena de morte através do utilitarismo do bem estar social (ou individual) já é incoerente aqui.

Em segundo lugar, a incoerência também é ideológica. Como ele pode defender o livre-mercado, portanto a ordem espontânea da sociedade, portanto a livre escolha, se ele promove a morte? Um bandido morto perde o direito de escolher seguir outro caminho, diferente ao do crime. Um marginal morto perde o direito de ser melhor. Em suma, ele perde aquilo que o próprio anarco-capitalista defende para si: liberdade de vida.

Como bom liberal, sou um jusnaturalista. E aquele liberal ou ancap que não defender as leis naturais, com o perdão da palavra, beira a demência. Como um sujeito pode defender liberdade promovendo a não-liberdade? A pena de morte já é imoral no fato de tirar a coisa mais preciosa que todo ser humano possui: a vida. Neste ponto, um defensor da pena de morte poderia alegar que o marginal não pensou na liberdade da vítima. Sim, eu concordo! O marginal que matou outra pessoa tirou da vítima a liberdade de viver. Mas isso não significa que o marginal perdeu seu direito a vida.

O direito a vida, a propriedade e a liberdade são inegociáveis. Em se tratando de lei natural, ou é ou não é. Se o ser está vivo, então a natureza logrou-lhe a vida sem pedir permissão para nenhum ser humano na face da Terra. Logo, a vida é imposta pela natureza e é uma lei por si mesma. Sendo assim, nenhum ser humano perde o direito natural à vida.

Voltando ao jusnaturalismo, se todo ser humano possui características inerentes ao ser, portanto que não foram dados pelo homem, mas pela natureza, então fica evidente que um crime não justifica o outro. Em termos morais, a pena de morte é equivocada, pois além de tirar a liberdade de adaptação e de melhoria mental do marginal, trai-se também o princípio de que todos são iguais perante a natureza e, portanto, todos são vivos por algum motivo.

Se o defensor da pena de morte relativizar o direito a vida, então os demais princípios serão também relativizados. A tríade liberal é simples: todo ser vivo possui uma propriedade em seu corpo (auto-propriedade). Habita neste corpo uma consciência viva que é livre, que é, portanto, liberdade (Sartre). Logo, para que exista a liberdade é necessário à auto-propriedade e para que exista auto-propriedade é necessário antes de tudo à vida! Trair o direito humano a vida é trair toda a tônica liberal e trair o próprio anarcocapitalismo como ideologia.

Se o defensor da pena de morte continuar sua cruzada contra a vida de marginais e assassinos, se o defensor da pena de morte continuar traindo as leis naturais, então ele não poderá jamais ser considerado liberal ou seus derivados ideológicos. Defensor de descarte humano são os totalitários, os estatistas e os verdadeiros fascistas. O descarte humano é aquilo que o liberalismo condena desde o seu início, lá na Revolução Inglesa.

Em termos práticos, a pena de morte também não resolve absolutamente nada. Mata-se um assassino, mas nada impede que outros dois surjam. Se a sociedade for feita de mortes, sempre haverá injustiças (mortes de inocentes genuínos). Assim como moralmente o ser humano estará morto. Se a moralidade morre (afinal moral relativa não é moral), então não há mais definição do que é ou não crime. A defesa da pena de morte, na prática, faz com que a humanidade perca aquilo que tem de humano. E se as leis naturais não forem mais eficazes e respeitadas pelo direito positivo, então toda a ideia de liberdade torna-se impraticável. Por isso o anarquista que defende a pena de morte está, na verdade, dando um tiro no próprio pé. Defender a pena de morte é ser anti-liberdade, é ser anti direitos naturais e, portanto, anti anárquico.

Não há argumentos morais que defendam a pena de morte. Vontade da família? Então um grupo coletivo de gente teria mais direito sobre a vida de um indivíduo do que ele mesmo? Qual é a diferença da pena capital estatal para a pena capital anárquica? Nenhuma! Apenas de grau de funcionalidade. A pena capital estatal é aplicada pelo uso da normatividade estatal. A pena capital anárquica é aplicada com base no “sentimento” de justiça, no emocional e não racional. E mesmo que numa sociedade ancap houvesse tribunais privados, a normatividade da pena capital seria privada, ao invés de estatal. Em suma, não se altera nada. A racionalidade reside na preservação dos direitos naturais do homem e não na sua destruição. Se o homem perde o direito a sua natureza, então a lei deixa de ter validade, então a moral deixa de existir e sobra tão e unicamente a tirania! Anarquistas que defendem a pena de morte não passam de tiranos!

Muito do que foi dito aqui vale, igualmente, para demais questões do “famoso” (e falho) princípio da não-agressão (PNA). Só que isso necessitaria de outro artigo que, um dia, escreverei. O anarcocapitalismo em si é uma ideologia falida, pois não tem aplicabilidade real no mundo moderno. Mas por agora creio que é suficiente. Espero que tenha esclarecido de uma vez não apenas minha posição, mas as razões pela qual é moralmente condenável qualquer liberal ou anarquista defender a pena de morte. Não existe nada mais contraditório do que um pretenso defensor da vida, propriedade e liberdade ser, ao mesmo tempo, defensor da morte.



Obrigado pela atenção,

Sasha Lamounier,
Um minarquista liberal puro.

Porto, Portugal
03 de Junho de 2014