A CONDENAÇÃO MORAL DA PENA DE MORTE
Como
prometido, eis meu artigo sobre a questão da pena de morte. Trata-se de um
artigo que esclarece amplamente as razões e lógicas que me levam a ser
contrário a todo tipo de pena capital, não importa se aplicado pelo Estado ou
pelos homens “livres”.
Pena de morte: a vida como moeda de
troca.
Quando se trata de pena de morte,
estamos falando de um tema gritantemente mal compreendido por pseudoliberais e
por anarco-capitalistas (que prefiro chamar de anarco-individualistas). Em
volta deste tema, há em primeiro lugar a necessidade de justiça. Frente a um
crime hediondo, seria legítima a morte do marginal? O que fundamenta isso? Se
não seria, por qual motivo?
Em debates pela Internet, nunca há uma
clara visão dos argumentos defendidos por todas as partes. Na verdade, muitos são
a favor e outros são contra sem ao menos se dar conta dos motivos que os levam
aos seus raciocínios. Para compreender perfeitamente as razões contra e a favor
da pena de morte, precisamos entrar em outra discussão ainda mais séria e
profunda. Afinal, existem leis naturais? Ou a sociedade é quem determina as
regras do jogo? Como alcançar o bom convívio social entre todos seus agentes?
Utilitarismo x Jusnaturalismo
O debate referente à penalidade da morte
ao criminoso perpassa por duas vertentes filosóficas que, diretamente,
influenciam o liberalismo e consequentemente o próprio anarco-capitalismo: trata-se
do utilitarismo versus jusnaturalismo.
O utilitarismo se fundamenta no
bem-estar geral da sociedade, tendo como base a ação de algo e sua
consequência. A lei natural (ou jusnaturalismo) propõe que há características
na vida humana que não são determinadas por vontade do homem, sendo, portanto,
inerentes à qualidade do ser. Estas duas vertentes acabam criando
desentendimentos filosóficos profundos entre a defesa moral da pena de morte e
a sua condenação. Por um lado, para os defensores da pena de morte, seria legítima
a morte de um assassino, pois ele é um mal para a sociedade e deve, por isso,
pagar na mesma moeda aquilo que ele causou de negativo a outro indivíduo.
Já para o jusnaturalista, a morte não é
algo que deve ser considerado pela vontade ou razão humana de bem-estar, visto
que o ser humano nasceu com características naturais inerentes ao seu ser. A
própria racionalidade humana deriva destas características naturais. Para o
jusnaturalista, o homem nasce com vida e esta vida é por si mesma, um princípio
maior que deve ser defendido sempre, mesmo para o mais cruel dos bandidos.
O utilitarismo é uma corrente filosófica
que surgiu através de mentes brilhantes, como Stuart Mill e Bentham (seu
fundador). No entanto, seu surgimento tinha mais como intenção fundamental
organizar a vida em sociedade tendo como base uma busca pelo bem estar geral de
todos os indivíduos. Sendo assim, o utilitarismo sozinho não é uma corrente
filosófica que defende a pena de morte, pelo contrário. Podem-se usar
argumentos utilitaristas para condenar a pena de morte. O que os defensores da
pena capital aproveitam do utilitarismo é tão e unicamente o fundamento do bem
estar geral.
Já o jusnaturalismo é um pouco mais
antigo, tendo surgido ainda na Idade Média, através de outras mentes brilhantes
como São Tomás de Aquino e posteriormente Hobbes e John Locke (este último, um
dos grandes pais do liberalismo clássico). A lei natural é simples e lógica. A
vida social exige que certos preceitos humanos sejam garantidos para que,
necessariamente, exista bom convívio entre os indivíduos. A lei positiva existe
para preservar o que a natureza logrou ao homem. Logo, a lei positiva é
derivada da lei natural e não de uma “vontade” humana. Ao contrário do que os
críticos do jusnaturalismo dizem a lei natural não depende da razão humana para
existir, visto que a lei natural antecede o próprio ser humano, sendo ele
apenas um receptor darwiniano das potências garantidas pela biologia natural do
ser.
Para o jusnaturalista, existem três
princípios naturais a serem respeitados: vida, propriedade e liberdade.
Notadamente, são também estes três princípios que fundamentam todo o corpo
filosófico do liberalismo clássico e moderno (o chamado libertarianismo). Vale
lembrar que o jusnaturalismo fundamenta, também, o próprio anarco-capitalismo.
Sem a defesa moral destes três princípios, não existiriam outros, tais como livre
mercado, ordem espontânea, liberdade de pensamento, liberdade de expressão,
democracia etc.
O utilitarismo, curiosamente, é a
filosofia menos liberal entre as duas. Na verdade, alguns intelectuais costumam
referenciar o utilitarismo como a defesa moral do Estado e do socialismo. A
ideia de que uma ação só é moral se causar felicidade a outro pode levar a
equívocos temerários. O que é felicidade? Se a própria ideia de felicidade é
relativa, então o conceito de moralidade do utilitarista é igualmente relativo.
Quem bateria o martelo para decidir o que é ou não moral? Só se for o Estado ou
o indivíduo mais forte. Nesse sentido, o utilitarismo contraria a lei natural,
pois não é a natureza que exerce influência na vida social e normativa do
homem, mas sim a vontade de felicidade do ser humano e sua busca incessante por
ela.
Então temos duas vertentes bem
claramente definidas. O utilitarista, que defende a moral da felicidade, ou do
bem estar geral da sociedade. E temos o jusnaturalista, que defende as
características inatas da vida humana.
Este específico debate entre ambas as
correntes é bastante amplo e para dissecar perfeitamente seria necessário
escrever um livro. E talvez em vários volumes. Como este artigo é uma dissertação
sobre as razões que levam seu autor a contrariar a pena de morte, não iremos
nos aprofundar tanto agora.
Uma questão de princípios
Como já dito anteriormente, a defesa ou
condenação da pena de morte é principiológica. Aqueles que defendem a pena
capital só o fazem por crer que aquele assassino não é mais útil à sociedade
após o crime cometido. Anarcoindividualistas podem alegar que a família da
vítima morta, por exemplo, teria o direito particular de vingar a morte de seu
ente querido através de uma penalidade brutal contra o marginal.
Qual é a moral desse raciocínio? É
utilitarista! Mas se é utilitarista, não é mais jusnaturalista. Então o equívoco
começa a ser de coerência. Existem duas correntes famosas que já defenderam
abertamente o “descarte” de seres “inúteis para a sociedade”. São elas o
comunismo e o nazismo. Ambas com concentrado poder estatal. O anarco (!)
capitalista que defende a pena de morte através do utilitarismo do bem estar
social (ou individual) já é incoerente aqui.
Em segundo lugar, a incoerência também é
ideológica. Como ele pode defender o livre-mercado, portanto a ordem espontânea
da sociedade, portanto a livre escolha, se ele promove a morte? Um bandido
morto perde o direito de escolher seguir outro caminho, diferente ao do crime.
Um marginal morto perde o direito de ser melhor. Em suma, ele perde aquilo que
o próprio anarco-capitalista defende para si: liberdade de vida.
Como bom liberal, sou um jusnaturalista.
E aquele liberal ou ancap que não defender as leis naturais, com o perdão da
palavra, beira a demência. Como um sujeito pode defender liberdade promovendo a
não-liberdade? A pena de morte já é imoral no fato de tirar a coisa mais
preciosa que todo ser humano possui: a vida. Neste ponto, um defensor da pena
de morte poderia alegar que o marginal não pensou na liberdade da vítima. Sim,
eu concordo! O marginal que matou outra pessoa tirou da vítima a liberdade de
viver. Mas isso não significa que o marginal perdeu seu direito a vida.
O direito a vida, a propriedade e a
liberdade são inegociáveis. Em se tratando de lei natural, ou é ou não é. Se o
ser está vivo, então a natureza logrou-lhe a vida sem pedir permissão para
nenhum ser humano na face da Terra. Logo, a vida é imposta pela natureza e é
uma lei por si mesma. Sendo assim, nenhum ser humano perde o direito natural à
vida.
Voltando ao jusnaturalismo, se todo ser humano
possui características inerentes ao ser, portanto que não foram dados pelo
homem, mas pela natureza, então fica evidente que um crime não justifica o
outro. Em termos morais, a pena de morte é equivocada, pois além de tirar a
liberdade de adaptação e de melhoria mental do marginal, trai-se também o
princípio de que todos são iguais perante a natureza e, portanto, todos são
vivos por algum motivo.
Se o defensor da pena de morte
relativizar o direito a vida, então os demais princípios serão também
relativizados. A tríade liberal é simples: todo ser vivo possui uma propriedade
em seu corpo (auto-propriedade). Habita neste corpo uma consciência viva que é
livre, que é, portanto, liberdade (Sartre). Logo, para que exista a liberdade é
necessário à auto-propriedade e para que exista auto-propriedade é necessário
antes de tudo à vida! Trair o direito humano a vida é trair toda a tônica
liberal e trair o próprio anarcocapitalismo como ideologia.
Se o defensor da pena de morte continuar
sua cruzada contra a vida de marginais e assassinos, se o defensor da pena de
morte continuar traindo as leis naturais, então ele não poderá jamais ser
considerado liberal ou seus derivados ideológicos. Defensor de descarte humano
são os totalitários, os estatistas e os verdadeiros fascistas. O descarte
humano é aquilo que o liberalismo condena desde o seu início, lá na Revolução
Inglesa.
Em termos práticos, a pena de morte
também não resolve absolutamente nada. Mata-se um assassino, mas nada impede
que outros dois surjam. Se a sociedade for feita de mortes, sempre haverá
injustiças (mortes de inocentes genuínos). Assim como moralmente o ser humano
estará morto. Se a moralidade morre (afinal moral relativa não é moral), então não
há mais definição do que é ou não crime. A defesa da pena de morte, na prática,
faz com que a humanidade perca aquilo que tem de humano. E se as leis naturais
não forem mais eficazes e respeitadas pelo direito positivo, então toda a ideia
de liberdade torna-se impraticável. Por isso o anarquista que defende a pena de
morte está, na verdade, dando um tiro no próprio pé. Defender a pena de morte é
ser anti-liberdade, é ser anti direitos naturais e, portanto, anti anárquico.
Não há argumentos morais que defendam a
pena de morte. Vontade da família? Então um grupo coletivo de gente teria mais
direito sobre a vida de um indivíduo do que ele mesmo? Qual é a diferença da
pena capital estatal para a pena capital anárquica? Nenhuma! Apenas de grau de
funcionalidade. A pena capital estatal é aplicada pelo uso da normatividade
estatal. A pena capital anárquica é aplicada com base no “sentimento” de
justiça, no emocional e não racional. E mesmo que numa sociedade ancap houvesse
tribunais privados, a normatividade da pena capital seria privada, ao invés de
estatal. Em suma, não se altera nada. A racionalidade reside na preservação dos
direitos naturais do homem e não na sua destruição. Se o homem perde o direito
a sua natureza, então a lei deixa de ter validade, então a moral deixa de
existir e sobra tão e unicamente a tirania! Anarquistas que defendem a pena de
morte não passam de tiranos!
Muito do que foi dito aqui vale,
igualmente, para demais questões do “famoso” (e falho) princípio da
não-agressão (PNA). Só que isso necessitaria de outro artigo que, um dia,
escreverei. O anarcocapitalismo em si é uma ideologia falida, pois não tem
aplicabilidade real no mundo moderno. Mas por agora creio que é suficiente.
Espero que tenha esclarecido de uma vez não apenas minha posição, mas as razões
pela qual é moralmente condenável qualquer liberal ou anarquista defender a
pena de morte. Não existe nada mais contraditório do que um pretenso defensor
da vida, propriedade e liberdade ser, ao mesmo tempo, defensor da morte.
Obrigado pela atenção,
Sasha Lamounier,
Um minarquista liberal puro.
Porto, Portugal
03 de Junho de 2014