24/07/2022

MORRE AOS 200 ANOS O BRAZIL (?)




Em 2022, o Brasil comemora os seus 200 anos de independência. Em dois séculos como nação soberana, saímos de um Império constitucional para uma República errática e golpeada ao longo de seu pouco mais de 130 anos de existência. Nascida, ela própria, de um golpe de Estado em 1889, quando uma quartelada derrubou o governo de D. Pedro II, a República hoje inaugura uma nova versão de si mesma. Num país que, ao longo do século XX, se vendeu para o mundo como um lugar alegre, progressista e otimista, inauguramos hoje a sua versão definitiva: o novo ‘velho’.

 

O ocaso da sociedade brasileira neste 2022 se encontra na clivagem entre dois Brasis diferentes. Um, representado pelo candidato da centro-esquerda Lula da Silva, e o outro representado pelo atual militarista presidente da República, Jair Bolsonaro. Duas candidaturas que, para além dos temas em destaque no processo eleitoral deste ano, acabam por encarnar em si mesmos duas visões de sociedade e de mundo bastante distintas. Do lado progressista, temos a ideia de um Brasil otimista, livre e aberto para as diferenças culturais e sociais. Um país incluído no circuito das democracias ocidentais sem medo de ter, no entanto, a sua própria voz.

 

Do lado militarista, temos um Brasil fundamentalista, hipócrita, violento e bastante conspiracionista. A ideia de sociedade aberta não é, aqui, bem-vinda. Trata-se de um Brasil fechado na sua própria bolha pueril, até mesmo provinciana, dominada pelo agronegócio e pelo sistema financeiro. Uma sociedade que em muito se assemelha a mesma sociedade escravocrata e elitista de finais do século XIX. Portanto, diria eu com certo enfadonho: estamos mesmo diante de algo novo?

 

O Brasil que morreu em 2022 não é o mesmo Brasil que sempre existiu, mas a ideia de que criaram 100 anos atrás na Semana de Arte Moderna de 1922. A (possível) reeleição de Jair Bolsonaro (ou o seu golpe) vem para representar o fim desta visão de país progressista tornada popular pelos quadros de Tarsília do Amaral, pelos escritos de Oswald de Andrade, pela música de Heitor Villa-Lobos e também pela inquietante mente de Rui Barbosa. Este Brasil, profundamente democrático e inclusivo, onde o povo era incluído como parte do processo político e não mais como observador passivo, este mito brasileiro de ‘país do futuro’, onde tudo seria possível nos trópicos, agoniza.

 

O que fica em seu lugar é a visão anterior a Semana de 1922. É a ideia de um Brasil exclusivo, onde a Casa Grande e a Senzala se distanciam cada vez mais, tornando o ambiente violento numa afronta ao próprio progresso humano. Um país que se tornou um moedor de gente, onde talentos são ceifados, onde as luzes do conhecimento são podados pelo obscurantismo da ignorância. A religião, outrora parte de uma espiritualidade espontânea, agora volta a ser instrumento meramente político. É parte integral, não apenas vacilante, da engrenagem deste novo Brasil moribundo. E diante deste quadro dantesco para qualquer democrata e progressista que se preze, nos perguntamos: o que será do Brasil daqui para frente? O que o povo pode fazer diante deste cenário? Quem somos nós, enquanto nação?

 

Comecemos pelo fim

 

Já discuti em outros escritos que nenhuma nação é apenas uma coisa só. Um Estado-Nação é um conjunto de intersecções sociais e culturais que se organizam debaixo de uma estrutura burocrática, a qual denominamos de Estado. Este Estado, estruturado em poderes (executivo, legislativo e judiciário), organiza a vida prática da sociedade e a impulsiona para o mundo, na sua relação consular diante dos demais povos. Neste sentido, temos de compreender que o Brasil não é apenas o Brasil de Bolsonaro, como também não é apenas o Brasil de Lula (embora ambos representem 80% da população brasileira em conflito, não apenas dois candidatos ou partidos em conflito).

 

O Brasil é toda a sua gente que participa e não participa do processo eleitoral. O povo brasileiro são os votos bolsonaristas, os votos lulistas, os votos brancos ou nulos, são também as abstenções e são também os votos nos demais candidatos. Todos são Brasil. Portanto, é uma tarefa um pouco mais complexa compreender como este tecido social está estruturado e como ele pode, ou não, arrebentar.

 

Um Estado para existir precisa de pelo menos duas coisas: compromisso social com a sua manutenção e um acordo para que as diferenças sejam organizadas dentro das regras do jogo deste Estado. Hoje, o Estado brasileiro é instituído como um ‘Estado Democrático e de Direito’, o que significa que trata-se e um Estado baseado numa carta de compromissos (a constituição da República) e num acordo entre divergentes que aceitam as regras deste compromisso para negociar as suas diferenças. A democracia é, em essência, não o ambiente onde as maiorias governam e as minorias fazem oposição. A democracia é o espaço aonde as contradições sociais encontram elementos de mediação constante. Também por isso as maiorias e minorias mudam de eleição em eleição. Se a democracia fosse o ‘império da maioria’, não haveria compromisso algum.

 

Desta feita, urge compreender que o Brasil de Bolsonaro e o de Lula são antagónicos em essência. E embora um possa ser numericamente maior do que o outro, ambos precisam encontrar elementos no Estado Democrático de Direito para conviver, não importando quem quer que seja eleito. Se a nação está rachada ideologicamente, e se o Estado não é capaz de sustentar o ambiente na qual tais contradições são negociadas, então o único caminho que sobra é a da distensão social e a disrupção de um inevitável conflito. Neste fatídico resultado, o que devemos nos perguntar é: quais forças teriam interesse em pacificar este conflito? De que maneira o Estado poderá sobreviver a este conflito?

 

Começando do fim, a resposta a esta pergunta é muito simples. O Brasil não possui mais compromisso social, de modo que a ideia uníssona de nacionalidade, de um pacto social independente de ideologias, não faz parte da agenda política, ou económica e sequer cultural do país. Se não temos mais compromisso, também não temos mais acordo. E neste sentido, o Estado Democrático já é um efémero fantasma de si mesmo, desprovido de sustentação e de força para a manutenção da paz social e do progresso do devir natural que acomete os povos em processo de progresso constante.

 

Quando me refiro a conflito, é o conflito de gentes, a guerra mesma, na sua essência. Ao antagonizar constantemente os adversários, tanto Bolsonaro quanto Lula acabam sendo os interlocutores que elevam a pressão social ao nível da ruptura. É muito claro que, diante deste cenário, e não havendo união por parte das elites económicas, intelectuais e culturais do país pela Democracia, ta conflito levará a uma decisão absoluta. Tal decisão, que acabará no colo dos militares e das PMs dos estados, definirá de que lado o pêndulo do destino brasileiro rumará.

 

As Forças Armadas não darão, em 2022, um golpe ‘clássico’. Elas não precisam, ainda mais com os privilégios que já tem, dar-se ao trabalho de romper o sistema de forma violenta. A violência política já está instalada e o comando militar já está no governo. Tudo o que eles precisam, agora, é de um evento-chave na qual a estrutura mesma do processo democrático seja abalado de tal forma que a tutela das Forças se torne inevitável. Nenhum regime militar se sustenta se os ditadores forem vistos como ditadores. Daí que o ‘ar’ de legalidade é importante, até mesmo para atrasar a resposta internacional a ruptura democrática.



 

O que estamos assistindo em 2022 é um processo lento e gradual de deslegitimação do Estado Democrático para fornecer subsídios visando a implementação de um Estado Militar. Estado este sustentado não por Bolsonaro, mas pelas forças populares que votam em Bolsonaro e que se posicionam em contrário a visão de Brasil progressista e democrática. O Brasil conservador, fundamentalista, exclusivista, patrimonialista e paternalista. O Brasil hipócrita, falso patriota e não muito diferente do que era na República Velha. Não será um regime que irá acabar com as eleições, mas sim um regime que irá controlar as eleições de tal modo que será muito difícil um resultado diferente ao desejado pelo Alto Comando encontre qualquer tipo de sucesso.

 

O ‘fim’ do Brasil progressista representa o fim do Brasil livre. Pois o livre pensamento, a livre manifestação de ideias, a própria arte e a criatividade económica ficam podadas diante de uma estrutura fechada, elitista, arcaica e antagónica a divergência. Muitos pensam que uma ditadura precisa de ter um ditador invocando atos institucionais. Decerto, essa foi a experiência brasileira dos anos 1970-80. Mas em 2022, tais ‘atos institucionais’ serão votados no Congresso comprado e fisiológico, dando assim um senso de ‘normalidade democrática’ para os atos fora das quatro linhas constitucionais. O povo, empobrecido, mas controlado pelas hordas fundamentalistas e pelo desporto, não conseguirão compreender que o regime está instalado e que a liberdade não existe. E é esta ignorância que, infelizmente, tornará praticamente irreversível a situação.

 

A pior ditadura não é aquela onde o abuso é evidente e claro. A pior ditadura é aquela que possui aparência de democracia. Temo que o Brasil caminhe para este trágico fim. E digo ‘fim’, pois não teremos capacidade social ou cultural de reinventar um novo Brasil depois disso. Não temos mais os mecanismos de livre debate, ou de educação popular, capazes de reverter o processo de destruição da nacionalidade brasileira. A ‘nova’ nacionalidade, é bastante velha. É a nacionalidade das elites podres que preferem controlar um país pobre do que prosperar num país rico para todos. Precisaríamos de uma revolução popular para reverter este quadro. E, infelizmente, temo que o povo brasileiro seja passivo demais para enveredar pelo caminho revolucionário.


O que nos resta

 

O leitor(a) poderia então me perguntar: o que fazer diante deste cenário? Parece que se ficar o bicho come e se correr o bicho pega! Pois eu diria, caro leitor(a), que a oportunidade para agir pacificamente já passou. Ou vamos para o conflito em defesa das teses democráticas da Semana de Arte Moderna de 1922, em defesa da Constituição de 1989, em defesa do Brasil do futuro que tanto vislumbramos em nossos corações, ou de fato iremos perde-la para sempre. O chamado para a luta é agora e não temos volta a dar. Se a sua escolha for não lutar por estes ideais, então estarás aderindo ao Brasil obscuro e arcaico que sempre existiu e que fingíamos que era passado.

 

Tal decisão não se resume a esta eleição. É uma luta constante, que inclui o pleito de 2022 e vai além dele. Se o Lula ganhar, teremos de garantir uma transição de poder. Se ele tomar posse, teremos de garantir que ele governe. E se ele governar, temos de garantir que ele não seja morto. O mesmo seria verdade se o Ciro fosse o vitorioso, se a Tebet fosse a vitoriosa, ou quem quer que seja que não fosse Jair Bolsonaro. Um país é um constante fazer, um constante processo. Aqueles que estejam dispostos a lutar por uma visão diferente de sociedade precisam, mais do que nunca, de se unir. Pois será a união desta visão diferente de Brasil que poderá fazer emergir uma esperança.

 

Se não houver esta união por um projeto diferente de Brasil, se não houver a adesão dos setores da elite económica, cultural, intelectual e mesmo militar pelo Brasil Democrático, de nada adiantará gastar nosso latim numa causa perdida. Não gosto de falar em termos absolutos, até porque a vida não é nada absoluta, mas bastante dinâmica. No entanto, o dinamismo da sociedade brasileira encontra neste 2022 o seu momento crítico. O não-agir significará a morte. O Brasil agoniza. Neste agonizar, não temos outra saída se não a permanente luta. Uma luta que se baseia em ideais, valores e princípios muito maiores do que a transitória eleição baseada nos interesses comuns e mundanos.

 

Durante a Guerra do Paraguai, em 1868, teria dito Duque de Caxias (o patrono do Exército brasileiro): “Sigam-me os que forem brasileiros!”. Pois este chamado ressoa novamente agora. Lutem pela democracia os que forem brasileiros! Pois se não lutarem, terão desistindo não apenas da democracia, mas também do próprio Brasil.



 

Obrigado pela leitura,

 

Porto, Portugal

24 de Julho de 2022

 

Sasha R. L. van Lammeren

 

 

13/07/2022

MANIFESTO PELA DEMOCRACIA

 


MANIFESTO EM DEFESA DA DEMOCRACIA E CONTRA O GOLPE DE ESTADO EM CURSO NO BRASIL


Diz a Constituição da República, no seu Artigo 142:


As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.


São os poderes constitucionais:


Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.


Isso significa que as Forças Armadas SERVEM ao poder executivo, ao legislativo e ao judiciário, de modo que todos os ministros do STF são comandantes das Forças Armadas de acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil. O Presidente da República, na sua atribuição de chefe do executivo, é o comandante supremo apenas no sentido de representar a chefia civil das forças, chefia esta compartilhada com os presidentes dos demais poderes (visto que nenhum poder é soberano ao outro, mas independentes e harmónicos entre si).


Isto posto, as Forças Armadas já estão imputando um Golpe de Estado, uma ruptura institucional, ao ameaçar as eleições e a supremacia do Tribunal Superior Eleitoral diante do pleito de 2022. O povo brasileiro, independente de partidarismo, precisa se levantar em uníssono para conter a escalada golpista outorgada pelo alto comando das Forças Armadas e pelo atual mandatário da cadeira do executivo. Se este levante pela democracia, pela República e pela constituição não ocorrer, estaremos entregando aos golpistas a oportunidade de romperem o mais longo período democrático da República.


A responsabilidade é de CADA um dos brasileiros que tem ciência do que está acontecendo e da sua devida gravidade.

 


13 de Julho de 2022

 Sasha Rupar Lamounier van Lammeren