Libertarianismo em Xeque



P A R A D O X A
CIVIS SEDITIOSUS ET TURBULENTUS

Por

Sasha Lamounier


Em 1517, há exatos 500 anos atrás, Martinho Lutero escrevia suas 95 teses, contraditando a política de indulgências da Igreja Católica e iniciando o processo de ruptura do poder absoluto da Igreja na Europa pré-renascentista. Hoje, em 2017, diante da propaganda de uma corrente política derivada da fé e da crença irracional em verdades não tão evidentes, escolhi este método para contraditar todas as principais teses libertárias de uma só vez.

Deste modo, a exemplo de Lutero, espero apresentar um contraditório que sirva apenas como instrumento de reflexão e de aprimoramento do debate. Não é minha intenção combater qualquer filosofia. Creio que todos os tipos de pensamentos são válidos para o exercício do intelecto humano. Minha intenção aqui é apresentar as falhas e contradições do argumento libertário, dando espaço para que esta filosofia seja aprimorada ou rejeitada pelo leitor deste documento.

Não se faz filosofia sem uma tese e uma antítese que investigue um problema real. Sem uma causa e uma consequência verificada na realidade humana, nos fatos. Verdades absolutas sem passar pelo crivo da razão e da lógica nada mais é do que uma crença irracional floreada por palavras sedutoras e retóricas oportunistas. Se queremos expandir nossa crítica política, social e econômica, é mister que comecemos pela correta inspeção de nossos desejos e dos meios pelo qual defendemos aquilo que desejamos.


AS 07 TESES LIBERTÁRIAS E SEUS PARADOXOS


Índice

1ª Tese
O homem como propriedade de si mesmo

2ª Tese
Todo Estado é ilegítimo

3ª Tese
O único sistema válido é o de trocas voluntárias (livre mercado puro)

4ª Tese
Uma sociedade de mercado é mais pacífica do que uma sociedade de Estado

5ª Tese
Diferenças entre o Libertarianismo de Rothbard (minimalista) e o de David Friedman (utilitarista)

6ª Tese
Imposto é Roubo

7º Tese
O Estado é incompatível com a sociedade de mercado

Conclusão



Os libertários brasileiros, defensores da tese anarco-capitalista, seja da linha Rothbardiana (minimalista) ou Friedmaniana (utilitarista), costumam defender o seguinte propósito geral:

A defesa da liberdade individual fundamentada na propriedade privada de si mesmo e nos direitos negativos naturais, de modo lato ou stricto sensu. A proposta visa a abolição de todos os Estados (ideia de origem anarquista) e a substituição deste pelas decisões voluntárias humanas de mercado (financeira) como a via natural de solução ou arranjo social final.

Tal proposta, no entanto, é eivado de erros lógicos e consequenciais. Toda filosofia, para ser válida como proposta, para deixar de ser apenas uma crendice sem futuro, precisa ter um conjunto de causas e consequências razoavelmente aceitáveis. Precisa possuir silogismos que de algum modo faça sentido. Não é o que ocorre com o libertarianismo moderno. E será isso que demonstrarei nos tópicos a seguir.



1ª Tese
O homem como propriedade de si mesmo.

Tal propositura afirma que o indivíduo tem o direito natural a autopropriedade e a tudo aquilo que ele produz a partir de sua ação no mundo. Isso significa que qualquer decisão de um terceiro que influa em sua vida é imoral, se não for aceite por sua própria vontade. É a afirmação absoluta do individualismo.

Contudo, o que esta tese não se preocupa em demonstrar é como que o indivíduo é formado e como ele existe. Quando um ser humano nasce, ele surge num cenário já pré-determinado para ele. Se ele nasce numa família pobre, ele terá um dado número de oportunidades iniciais e de influências que constituirão a sua personalidade. Se ele nasce numa família abastada, terá outro número de diferentes influências. Ao passo que ele vai crescendo e se desenvolvendo como ser humano, ele terá diversas experiências que serão mais ou menos importante para sua consciência. E tudo isso vai moldando sua personalidade.

Quando falamos no caráter absoluto do individualismo, estamos falando na verdade do caráter absoluto da personalidade. Um indivíduo humano, como todo animal neste planeta, se manifesta como um corpo físico. No entanto, a partir do momento em que este corpo físico ganha um nome e uma história, ele ganha também uma personalidade. Dez cães anônimos enfileirados numa rua não significam nada de especial. Mas nove cães e o Bob, seu cachorro de estimação, é algo bem diferente. Pois o cão Bob tem um nome, tem uma história e tem um significado.

O mesmo acontece com o indivíduo. No entanto, a tese libertária afirma que este indivíduo tem o DIREITO de ter o controle absoluto sobre seu corpo e tudo aquilo que ele produz com seu corpo. Averiguemos a possibilidade desta afirmação. Pois bem, como o indivíduo vai possuir seu corpo sem estar nele? Se o indivíduo só pode se manifestar neste planeta através de seu corpo, então ele É o corpo. Você não pode “possuir” algo que você é. A partir do momento que um indivíduo perde o corpo, ele também cessa de existir.

Neste caso, os libertários não defendem a autopropriedade do corpo, mas sim a ESCOLHA do que o indivíduo faz ou deixa de fazer consigo. Estamos no campo das ideias, portanto. Afinal de contas, você já é o corpo. Mas o que você faz com ele depende de uma série de externalidades. Depende de sua personalidade. O que é a personalidade? É um conjunto de ideias que o indivíduo tem de si próprio.

Se estamos falando de diversas personalidades diferentes terem o direito absoluto de suas escolhas, então a questão que se coloca é a seguinte: em algum momento o ser humano DEIXOU de ter direito a suas escolhas?

Entramos num outro tipo de debate aqui. O real debate. O debate sobre a liberdade negativa e positiva. Que é o guidão de todas as teses libertárias, sejam elas de natureza minimalista ou utilitarista (ou ainda, transcendental). Segundo os clássicos liberais (John Locke, David Hume etc), direitos negativos são os direitos naturais que um indivíduo possui independentemente de garantia externa. Tais direitos, segundo Locke, seriam os direitos a vida, a liberdade e a propriedade. São como “fatos” pré-estabelecidos pela existência.

O contexto em que Locke escreveu tal tese era a Europa cristã e protestante. Ele próprio, um defensor da moral cristã. Portanto, havia nele uma grande influência metafísica. Esta influência metafísica foi passada para os libertários modernos, mas sem a envergadura religiosa. Libertários defendem que o indivíduo tem o direito “ético e moral” de não ser morto, de não ser forçado a nada e de não depender de ninguém. Pois direitos negativos, como dito anteriormente, não se referem a direitos “ofertados”. Mas a direitos “não retirados”. Logo, tudo aquilo que inflige estas leis naturais se torna incorreto por natureza.

Dito isso, voltemos a pergunta: em algum momento o ser humano DEIXOU de ter direito a suas escolhas?

Quando foi que o homem deixou de lutar por sua sobrevivência? Quando cada ser humano neste planeta nasce, ele nasce com um relógio que ruma apenas para a morte. É a única certeza que todo indivíduo tem. Portanto, o direito de “não ser morto” é antinatural. A verdade é que se você nasceu, você morrerá um dia. Seja por não ter comida no prato, seja porque caiu uma pedra na sua cabeça, ou porque uma bala perdida te atingiu num domingo de tarde. Se morrer também é natural, então o direito de “não ser morto” é, na verdade, o direito a sobrevivência num mundo feito para te matar. E isso contradiz a tese inicial libertária. Como você pode ter um direito negativo a “não ser morto” se a natureza constantemente te coloca rumando para a morte?

O segundo caso, quanto ao direito de “não ser forçado” por terceiros, me parece seguir a mesma linha de raciocínio do primeiro caso. Como o indivíduo pode não ser forçado a algo, se em primeiro lugar ele procura sobreviver? Se para sobreviver (ou seja, manter-se vivo) ele for forçado a deixar de fazer algo, ou se ele for forçado a fazer algo, então ele fará, de modo que os indivíduos preferem fazer algo contra sua vontade desde que isso lhes garanta a sobrevivência.

Por fim, como o indivíduo vai deixar de depender de alguém, ou seja, como ele será absolutamente autónomo, se por toda a vida ele precisa de cooperação tácita ou forçada para existir? Você, caro leitor, só está aqui lendo este texto pois superou a infância e foi alimentado por outras pessoas. Você está aqui, vivo, pois aparentemente ninguém lhe furtou a vida até agora. Portanto, há um arranjo já pré-estabelecido, forçado, que vai além de você enquanto indivíduo e que garante sua sobrevivência. A isso chamamos de cultura e incluímos todas as experiências passadas do ser humano na busca incessante pela sobrevivência. De fato, podemos dizer que todo sistema social é, na verdade, um “manual de sobrevivência” dos antepassados para os dias de hoje.

Se você nasce e o tempo inteiro luta para se manter vivo (alimentação, acesso a algum sistema de saúde, segurança, capacidade de trabalhar e preencher suas necessidades), então você positiva aquilo que chamamos de direitos negativos. O direito negativo a vida só pode ser mantido se ele for positivado por alguém de alguma maneira. Um indivíduo imóvel, que não trabalha, que não se alimenta, que não faz nada, acabará morto.

Portanto, em resumo, concluímos que a autopropriedade não existe, pois você não pode possuir a si mesmo. Seu corpo é você. O que os libertários afirmam é que o indivíduo deve ter o direito de fazer o que quiser consigo mesmo. Já vimos que todo indivíduo sempre teve esta liberdade. Mas ele é forçado pela lei da sobrevivência a fazer ou deixar de fazer suas vontades, se quiser persistir na vida. Sua vida natural se resume a preservar este corpo. E para preservar este corpo são e salvo você fará de tudo, seja pela sua vontade ou contra a sua vontade. Querer impedir que terceiros ou que circunstâncias exógenas (externas) ao indivíduo deixem de o influenciar ou de controlar suas decisões é falacioso. Você sempre será forçado a fazer ou deixar de fazer algo. Seja pela cultura onde nasceu, seja pelas suas lembranças (sua história), ou ainda, pelas circunstâncias. Você não pode ter tudo o que quer. A vida não é um jogo de vídeo game.

O que nos leva a conclusão final de que sempre haverá algum poder atuando sobre suas escolhas. Sua liberdade “absoluta” não existe, pois você será limitado pela luta da sobrevivência de si mesmo e pelo que sabe da realidade. Você nunca saberá de tudo na vida. Você saberá das coisas que tem acesso. E somente sobre estas coisas que você conhece, você poderá decidir se faz ou deixa de fazer algo.



2ª. Tese
Todo Estado é ilegítimo

Partindo do pressuposto que o libertário considera válido apenas as coisas que ele conscientemente “escolheu”, ele conclui que o Estado, aparentemente imposto a ele de cima para baixo, não foi escolhido por sua vontade. Logo, ele é naturalmente ilegítimo.

Como vimos na refutação da primeira tese, a liberdade absoluta é uma falácia. Você sempre estará limitado por duas razões: a sua necessidade de sobrevivência e aquilo que você conhece da realidade.

Quando o libertário afirma que o Estado é ilegítimo, precisamos compreender o que ele define por Estado. E segundo os principais autores libertários, o Estado é o “aparelho coercitivo e monopolístico do uso da força”. Ou seja, o Estado necessariamente é o detentor da força e da coerção e por isso ele lhe imputa limites a todo momento. O problema é que o libertário defende a abolição dos Estados mas não sabe explicar como surgem os Estados. Se você defende o fim de algo, deve então apresentar um argumento que contradiga a necessidade deste algo.

Pela Teoria Geral do Estado e pelos livros de história, vemos que Estados (entendidos como aparelhos coercitivos que aplicam uma regra impositiva num dado território), sempre existiram. O que é novo é o conceito de “estado-nação”, mas não o de “estado”. Clãs primitivos, reinos antigos, impérios antigos, tudo era uma forma de Estado. E para entender seu surgimento, precisamos compreender o conceito de território e propriedade privada.

O libertário julga que compreende o princípio da propriedade privada, mas ele se esquece que “propriedade” é um conceito anterior a própria escrita cuneiforme e da roda. Propriedade é tudo aquilo que você se apropria. Portanto, quando uma tribo primitiva se apropriava de um território, ou de alguma riqueza qualquer, eles criavam pela força um direito de propriedade. Logicamente, se outra pessoa viesse tomar, também pela força, esta propriedade, os originais proprietários lutariam para impedir o roubo. Foi ai que surgiram os exércitos.

O mundo natural é um mundo sem dono. Portanto, é falso a afirmativa de que a propriedade é natural. Nunca foi. Ele se torna real pela força. E neste mundo sem dono, temos seres humanos programados para morrer. O planeta é um lugar finito, que possui uma dada quantidade de riquezas e de espaço geográfico habitável. Isso significa que estas pessoas nascidas para morrer percorrem a vida num lugar sem dono e cheio de riquezas específicas que, por sua necessidade, se tornam muito valiosas. Não é difícil compreender a partir daqui que o território é um recurso escasso e valioso e que a proteção dele dá status e poder a quem o possui.

Se território é um recurso escasso e valioso e se todos os moribundos indivíduos programados para morrer precisam dele, então é óbvio que existirão exércitos para proteger um território. E que estes exércitos defenderão seu território criando um sistema de governo, de hierarquia, de administração. Isso por si só já refuta toda a tese anarquista clássica. As pessoas que nascem neste território terão um determinado conjunto de regras a seguir, visando a preservação deste território. Daí nascem as culturas, religiões, costumes, tradições e assim por diante. A nação judaica, por exemplo, até hoje vislumbra os territórios sagrados do antigo Reino de Israel. Os muçulmanos sonham em refundar o antigo Califado islâmico. E assim por diante.

Para existir Estados, basta que tenhamos a seguinte fórmula:

Território + poder + necessidade = Estado.

Mesmo nos sonhos mais futuristas, o mundo sempre terá territórios mais valiosos do que outros. Seja para exploração energética, ou para alimentar os bilhões de seres humanos deste planeta. O que garante que este território será usado da forma mais eficiente possível é a existência de uma cadeia de proteção que impede que tais territórios serão disputados a todo instante. Estados atuam como forças de balanço do poder. E é o equilíbrio de poder que garante a paz. O desequilíbrio de poder gera a guerra. E por disputa devemos compreender não apenas a disputa pela força, mas necessariamente econômica.

Se todo Estado é ilegítimo pois é imposto de cima para baixo aos indivíduos, é necessário que o libertário resolva o problema da territorialidade, do poder e da necessidade. Como, ao abolir toda forma de Estado, a sociedade libertária irá se organizar para maximizar recursos no mundo real? O Estado não é imposto de cima para baixo por alienígenas, mas pela necessidade do ser humano organizar o território e nele viver pacificamente. Se todo território é ambicionado por conta de suas riquezas, então no primeiro dia em que não houverem Estados, haverá grupos de pessoas que se unirão e se armarão para defender uma cerca num dado território. E isso não é porventura o nascimento de um Estado?

Sem dúvida que sim. Mas o libertário dirá que as simples trocas voluntárias entre indivíduos é suficiente para maximizar recursos. E ele afirmará isso sem explicar porque a mais de 10 mil anos a humanidade escolheu a formulação de governos em territórios como a maneira mais eficiente de maximizar recursos. A pulverização de pequenos territórios ao redor do mundo cria uma série de problemas econômicos para a distribuição da riqueza e do bem-estar. Cria um grande desequilíbrio de poder, pois serão muitos contra muitos, o que impede o desenvolvimento dos mercados agregados. Em última instância, todos buscam sobreviver, lembra? Então como a sociedade pulverizada e sem Estados do libertário sobreviverá?

Afirmar que todo ser humano terá os recursos para sobreviver por conta própria, em sua casa, é a mesma coisa que afirmar que todo indivíduo irá visitar a Lua no final de semana. A disparidade de poder financeiro, intelectual, político, militar e assim por diante é natural, pois também é natural a desigualdade humana. Isso significa que sempre haverá um conjunto de pessoas com mais poder do que outras. E quem tem mais poder, tem mais recursos. E tendo mais recursos, os que tem menos dependerão em algum estágio da vida destes que tem mais poder. Não é todo mundo que terá uma plantação em sua casa para alimentar-se ou vender para os demais. No momento em que as cadeias internacionais de oferta e demanda acabarem por conta do fim dos Estados (só existe mercados internacionais por conta dos interesses dos diferentes Estados no planeta), também acabará a indústria moderna. E sem a indústria moderna (baseada na divisão internacional do trabalho), não tem como manter a tecnologia moderna. Nem toda pessoa nasce num lugar capaz de fornecer a ela todos os subsídios da vida. Alguns lugares são quentes demais. Outros são frios demais. Outros são simplesmente inférteis. Outros são tão férteis que ele não precisará de comercializar com ninguém.

Por ser mais eficiente, mais prático e mais factível com a realidade humana, seres humanos criam hierarquias de poder que fornece uma cadeia de comando para um conjunto de decisões que o indivíduo, no nível pessoal, não tem como considerar. Quem tem mais poder para comprar sacos de trigo em meio a uma grande seca. Um homem muito rico ou um indivíduo sozinho? E entre eles dois, quem terá maior poder de barganha ou de chantagem um com o outro?

O sistema de poder que faz os pobres dependerem dos ricos se chama, no Brasil, coronelismo. E na prática é isso que acontecerá se o Estado simplesmente deixar de existir no Brasil. Grupos de indivíduos ricos ou fortemente armados tomando conta de um dado território e suas gentes. Os conceitos de justiça serão determinados por estes poderosos a sua revelia.

Mas tais problemas não passam pelo crivo de responsabilidade do libertário, pois ele não se preocupa com o que é possível ou desejável, mas com o que é aparentemente certo. E para o libertário, só importa que “o Estado é ilegítimo e imposto é roubo”.

Se na refutação à tese 1 eu já provei que direitos naturais não existem e que a única certeza da sua vida é a sua morte, agora provei que justamente por conta da consciência de nossa finitude nós, seres humanos, escolhemos a 10 mil anos atrás defender a propriedade privada de forma forçosa, coercitiva e coletiva. Um indivíduo não tem poder contra 10 indivíduos de mesma estatura. Por sabermos disso, por reconhecermos que o homem é lobo do homem, pois ele demanda sua sobrevivência em primeiro lugar, nós criamos regras impositivas. E ao longo da história, temos desenvolvido estas regras de modo que melhor forneçam aos indivíduos um ambiente onde ele possa viver e desenvolver suas potencialidades. Foi assim que chegamos ao estágio atual da humanidade.

A sua casa, ou a sua loja, só tem validade enquanto propriedade pois ela existe dentro de um território que todos os demais indivíduos reconhecem como sendo compartilhado. Todos compreendem uma única mesma regra de propriedade e de direito. O seu vizinho segue as mesmas leis que você. Não há conflito de interesses, pois a justiça que serve para você também serve para ele. E isso cria um ambiente de paz. Se toda rua, se toda esquina tivesse um dono diferente e leis diferentes, seria impossível o próprio direito a propriedade privada. Portanto, defender a propriedade privada é defender, necessariamente, a existência de Estados (seja lá o nome que você der, desde Tribo, a Reino ou país). Goste o libertário disso ou não.



3ª. Tese
O único sistema válido é o de trocas voluntárias (livre-mercado puro)

Creio que se o leitor chegou a terceira tese depois de ter lido as refutações a primeira e segunda tese, já possui certa afinidade com a linha de raciocínio deste documento. A terceira tese libertária mais comum afirma que o sistema mais eficiente e o único moralmente compatível com a liberdade humana é o livre-mercado puro, sem qualquer restrição ou controles externos.

Para entender as contradições desta tese, precisamos conceituar o que cada coisa é. Mercado, para o libertário, é o ambiente de trocas onde ofertas e demandas são precificadas pelo conjunto de ofertadores e demandadores de algum produto ou serviço. Livre-Mercado, portanto, é o lugar onde estas trocas acontecem sem qualquer controle.

O que está implícito aqui é que o mercado, naturalmente, é um sistema AMORAL. Pois não faz parte dele nenhuma ética a priori. O mercado é apenas um lugar de trocas entre quem demanda e quem oferta aquilo que é demandado. Neste sentido, não há diferença entre o mercado de chapéus e o mercado de assassinos de aluguel. Ambos possuem uma demanda e uma determinada oferta. O que é moral ou ético fica de lado, dependendo da CULTURA e das LEIS de um dado território.

O livre-mercado libertário não oferece nenhum tipo de equilíbrio ético para o que é ofertado e demandado, pois ele defende o mercado irrestrito, sem controles (inclusive do que é justiça). Oras, se é sem controles, então efetivamente qualquer coisa pode ser ofertado e demandado que não sofrerá nenhum tipo de punição.

Muitos libertários tentam resolver este problema a partir do boicote social. Mas o boicote social só funciona se num dado território um grupo de indivíduos compartilhar dos mesmos fundamentos morais e éticos. Numa sociedade libertária muçulmana será antiético vender biquínis para as mulheres. Mas será legítimo vender chicotes para os maridos, através da Sharia, punir suas esposas. Em ambos os casos o boicote social pode ser usado. Seja na sociedade islâmica ou na cristã. E isso não necessariamente aumenta a liberdade individual que os liberais clássicos defendiam antigamente.

Mesmo que o libertário cristão e ocidental diga que a prática da Sharia é contrário ao libertariaismo, ele não terá como “refutar” um muçulmano que compreende a vida a partir do prisma da Sharia. Considerando que o mundo tem bilhões de muçulmanos e que o número de cristãos é semelhante ao de muçulmanos, não podemos afirmar que a visão cristã é “mais bem vendida” no mercado da ética. Se o libertário quer por a ética à venda, literalmente, então ele terá de aceitar que a sua ética pode não ser a preferida do consumidor.

Sendo isso verdade, como fica a tese inicial? Se o livre mercado puro pode oferecer risco aos conceitos ocidentais de liberdade e propriedade privada, como fica toda a doutrina libertária? O que ela defende, afinal de contas? Se sua doutrina leva ao desmonte das suas próprias teses, então ela não só é inválida como ainda é ineficiente. Livre mercado absoluto é o que existe em lugares como a pré-história. Se entendermos que seres humanos fazem trocas entre si desde sempre, então as trocas da Idade da Pedra, as trocas feitas na Idade do Bronze, do Ferro, na Era Clássica, na Era Moderna, e em todos os tempos da história são legítimos. E nada impede que, havendo livre circulação de qualquer ideia, as ideias anti-humanistas vençam.

O libertário defende um pressuposto humanista (a tríade lockeana é ocidental e humanista). O problema é que os direitos a vida, liberdade e propriedade só chegou ao nosso conhecimento hoje em dia, pois foram defendidos pela coerção dos Estados nos últimos 250 anos. Sem os Estados para criar um ambiente ético mínimo para o mercado, este mercado poderá assumir qualquer face. Inclusive a anti-humanista.

Portanto, a defesa de um livre-mercado absoluto não existe. Não só porque o mercado do capitalista tradicional (liberal clássico) é humanista, mas também porque o mercado puro nunca deixou de acontecer. O problema é que ele sempre foi fundamentado pela força de uns mais poderosos contra outros. Por muito tempo o Império Britânico (local de nacimento dos liberais clássicos mais influentes) teve um poder absoluto no planeta. E por conta deste poder do antigo Império Britânico os valores do iluminismo escocês e do liberalismo se espalharam. Sem a força coercitiva do império britânico, as ideias da liberdade individual ocidental de nada valeriam.

Ideias, valores éticos e morais e princípios só tem validade se forem garantidos pela força física. Libertários entendem isso, pois eles consideram que cada indivíduo tem o direito de portar armas para defender sua casa. O problema é quando muitos indivíduos tem armas melhores do que a sua e invadem a sua casa. Neste momento, você precisará de alguém mais forte para lhe proteger. E é ai que entra o Estado. Livre Mercado sem Estado não é livre-mercado, é apenas “todo mundo contra todo mundo”. É o estado de barbárie onde tudo é válido. O problema é que onde tudo é válido, nada é realmente válido. Entramos em anomia. E no estado de anomia, não há trocas voluntárias. Mas apenas trocas primitivas de primeiras necessidades. Ou seja, a escravidão travestida de liberdade.  



4ª. Tese
Uma sociedade de mercado é mais pacífica do que uma sociedade de Estado

Como vimos no desenvolvimento da resposta a terceira tese, mercado é o ambiente onde ocorre trocas entre oferta e demanda. E livre-mercado é onde estas trocas acontecem sem nenhum controle. O que nos leva, necessariamente, ao questionamento ético e moral da natureza humana e seus desejos. O livre-mercado puro favoreceria a humanidade de fato?

O libertário defende a teoria de que uma sociedade baseada apenas em trocas voluntárias, sem nenhum tipo de coerção interferindo nestas trocas, tende a ser mais pacífica do que uma sociedade dividida e organizada por um Estado. O libertário diz isso pois, segundo ele, é custoso fazer aquilo que não é bem visto pela sociedade (argumento consequencialista). Portanto, uma agência privada de segurança, por exemplo, não teria incentivos suficientes para a guerra do mesmo modo que os Estados tem. Os indivíduos procurariam serviços pacíficos e responsáveis e não serviços que promovessem algum tipo de conflito.

Tais afirmações no entanto estão mais na seara da crença do que da verdade empírica. Para explicar a contradição deste argumento, vale considerar a Teoria dos Jogos. Tal teoria afirma que dependendo das circunstâncias, os indivíduos são mais inclinados a determinada escolha do que outra. Um famoso dilema da teoria dos jogos é o Dilema do Prisioneiro. Diz ele o seguinte:

Dois suspeitos, A e B, são presos pela polícia. A polícia tem provas insuficientes para os condenar, mas, separando os prisioneiros, oferece a ambos o mesmo acordo: se um dos prisioneiros, confessando, testemunhar contra o outro e esse outro permanecer em silêncio, o que confessou sai livre enquanto o cúmplice silencioso cumpre 10 anos de sentença. Se ambos ficarem em silêncio, a polícia só pode condená-los a 6 meses de cadeia cada um. Se ambos traírem o comparsa, cada um leva 5 anos de cadeia. Cada prisioneiro faz a sua decisão sem saber que decisão o outro vai tomar, e nenhum tem certeza da decisão do outro. A questão que o dilema propõe é: o que vai acontecer? Como o prisioneiro vai reagir?

Em resumo, as opções são:



Do ponto de vista do Ótimo de Pareto, a solução mais provável é onde A e B negam o crime, garantindo assim a maximização dos recursos disponíveis a e pena mais branda possível para ambos.

Mas do ponto de vista do Equilíbrio de Nash, a tendência é para ambos delatarem. Se existe a possibilidade de A e B saírem livres caso delatem o outro, eles tenderão a apostar que o outro procurará o melhor para si mesmo e, por isso, acabarão equilibrando o resultado, chegando a situação onde ambos delatam.

Fica claro neste exemplo que temos dois tipos de atitudes possíveis do indivíduo no mercado puro: ou ele coopera visando a melhor solução COLETIVA, ou ele atua visando seu PRÓPRIO interesse em primeiro lugar.

Partindo do pressuposto de que o libertário defende o máximo individualismo baseado na “autopropriedade” e no direito absoluto de escolha, é evidente que os incentivos da sociedade consumista libertária está mais para o Equilíbrio de Nash do que para o Ótimo de Pareto. Afinal, se é mais seguro crer que cada indivíduo buscará o melhor para si, então o melhor para si pode não ser o melhor para o conjunto de indivíduos.

Se a justiça, se a segurança, se todos os serviços básicos de saúde e educação, se toda a mídia tradicional e alternativa, se todas as decisões financeiras e militares ficarem na dependência dos consumidores, então efetivamente aqueles que tiveram maior condição de arcar com custos serão os privilegiados. E como todo indivíduo tende a concentrar riqueza, pois ele quer sempre o melhor para si mesmo, é bem mais provável que homens muito poderosos, donos de agências de segurança e justiça, utilizem seus recursos para influenciar as decisões de seus consumidores de acordo com seus interesses econômicos e de poder.

O homem comum, pobre, sem recursos suficiente, ficará inteiramente refém deste sistema plutocrático, pois na sociedade libertária todos pensam em si mesmos. Não há nenhum incentivo para o pensar coletivo, comunitário. A comunidade acontece quando as únicas alternativas de solução de conflitos é a cooperação. Mas quando os conflitos podem ser resolvidos por quem pagar mais, não há mais cooperação. Apenas a guerra, o conflito.

Libertários tentam defender o livre mercado puro usando o Ótimo de Pareto, como se o mercado fosse eficiente em tudo o que fizesse. Logo, o mercado também seria mais eficiente na condução da solução de contendas. O problema é que a eficiência do mercado não é baseada num valor ético de sociedade ou de comunidade, mas apenas no autointeresse. Portanto, o mercado é sim eficiente, mas ele pode ser eficiente para qualquer oferta e qualquer demanda. Dizer que o mercado é eficiente nada mais é do que afirmar que oferta e demanda encontram um ponto de equilíbrio sempre. E isso, efetivamente, não quer dizer nada. O tipo de oferta e demanda que surge no mercado depende das necessidades deste mercado.

O Ótimo de Pareto não garante que os recursos serão melhor organizados de modo a beneficiar o maior número possível de pessoas. Mas pelo contrário, a concentração de riqueza e de poder pode muito bem acontecer eficientemente. Se for mais eficiente concentrar poder do que descentraliza-lo, então será este arranjo que o mercado irá encontrar.

O libertário usa o argumento da Islândia Medieval para defender que, em teoria, os mais pobres poderiam ser beneficiados com proteção e garantias legais na “anarquia”. O problema é que a Islândia Medieval não era uma anarquia de fato. Eles tinham uma hierarquia social, tinham uma cultura muito forte e presente na vida de cada indivíduo, tinham uma TRADIÇÃO, uma série de costumes que, por si só, criavam um paradigma de realidade a ser adotado. Não era uma sociedade individualista como a sociedade de mercado, mas sim uma sociedade culturalmente estabelecida.

Oras, se o libertário defende apenas uma sociedade de mercado, não importando a cultura, então absolutamente nada garante que os mais pobres terão algum tipo de benefício. Pelo contrário, pode ser mais eficiente para os muito ricos que os muito pobres simplesmente não tenham direitos. É mais barato ter mão-de-obra praticamente assalariada (escrava) do que remunerada. Pode ser mais barato empregar crianças em idade escolar do que pessoas mais velhas. A Inglaterra da Revolução Industrial deveria servir como exemplo do que acontece quando os interesses de grandes industriais, banqueiros e empresários fica na frente dos interesses dos mais pobres.

É falsa a ideia de que o livre mercado puro garantiria uma organização social mais justa ou mais equitativa para os indivíduos. Uma sociedade inteiramente baseada em interesses financeiros seria uma sociedade organizada de acordo com os interesses das firmas, das empresas e daqueles por trás de sua hierarquia acionista. O consumidor final é apenas o recipiente das decisões tomadas pelos decisores de mercado. Empiricamente, a realidade demonstra que a tendência de uma sociedade baseada apenas no individualismo e no consumo é uma sociedade dividida por hierarquias de poder financeiro. E havendo poder financeiro, não há de fato “anarquia”, mas uma sociedade PLUTOCRÁTICA e baseada no governo de muito poucos.




5ª Tese
Diferenças entre o Libertarianismo de Rothbard (minimalista) e o de David Friedman (utilitarista)

O libertarianismo tem muitos autores conhecidos, mas dois deles são os mais influentes quando se trata do caráter doutrinário da filosofia libertária. Por um lado, Rothbard defende a tese minimalista dos direitos negativos, afirmando que é imoral qualquer direito natural ser infligido por outrem. Ou seja, é imoral a coerção contra não-agressores. Logo, ela deve ser sempre evitada na sociedade libertária.

Por outro lado, David Friedman (filho do ilustre Milton Friedman), parte de um pressuposto utilitarista e consequencialista. Ele afirma que dado que os mercados são mais eficientes do que os governos, necessariamente as agências privadas de justiça que promoverem o bem-comum serão mais aceitas pelo consumidor do que as agências tirânicas.

No caso do argumento rothbardiano, temos uma declaração de fé. Ele parte do pressuposto de que a grande maioria dos indivíduos numa sociedade libertária tenderiam a concordar, a ratificar a tese dos direitos negativos. Portanto, as agências privadas que respeitassem os direitos naturais do indivíduo teriam sucesso e as que não respeitassem, não teriam sucesso. Tal argumento se baseia num racionalismo absoluto, radical, dogmático, onde há uma aposta de fé onde todos concordariam com os mesmos conceitos e princípios do que é o direito natural e como todo indivíduo possui direitos naturais.

Não preciso ir muito longe para refutar tal proposição. Logo na resposta a tese 1 eu demonstrei que não existem direitos naturais, mas apenas a lei da sobrevivência. O ser humano é um ser vivo programado para morrer. Por toda a sua vida ele busca manter-se vivo. Logo, a natureza ou a razão não lhe deu nenhum direito. Apenas lhe deu uma vida que irá, necessariamente, acabar um dia. Cabe a cada indivíduo manter-se vivo como puder dentro das circunstâncias que a sociedade lhe oferece. Posto isso, o MODO como cada indivíduo sobrevive independe do respeito aos direitos de outrem. Se for melhor para minha sobrevivência romper com os direitos de outro, eu o farei. Esta é toda a ética possível no mundo real. Não há pesos e contrapesos que impeçam isso, a não ser o poder financeiro, como já exposto na resposta a tese 4.

David Friedman, tentando passar ao largo do programa dogmático de Rothbard, afirma que necessariamente a eficiência de mercado promoveria o bem-comum e a garantia dos direitos individuais. Mas como demonstrado pelo Equilíbrio de Nash e pelas possibilidades do Ótimo de Pareto, nada garante que a eficiência de mercado favoreça as grandes massas de pobres. Na realidade, o direito não trata da verdade metafísica, mas da retórica. Se tudo depende de retórica, então quem tiver condições de pagar mais e melhor por uma justiça seletiva, o fará. Os mais pobres não tem espaço na eficiência de mercado, uma vez que o mercado procura atender a resultados. E se os resultados vierem das mãos de consumidores ricos e poderosos, então será este resultado que prevalecerá. Portanto, a eficiência de mercado promovida por Friedman não necessariamente promoverá as liberdades individuais. Mas pode, possivelmente, atender a interesses escusos e tirânicos fingidos de “libertários”.

Não há diferenças reais entre Rothbard e Friedman. Ambos acreditam numa declaração de fé. Rothbard é mais claro em seu dogmatismo e Friedman tenta florear seu dogma com um argumento consequencial. Mas ignorando completamente que consequencialmente nada garante em absoluto que o mercado favorecerá os indivíduos. Portanto, é seguro afirmar que o libertarianismo é uma doutrina baseada numa crença, não numa verdade empírica, científica ou mesmo lógica. Por nenhuma via, nem jusnaturalista e nem utilitarista, o libertarianismo consegue fugir das amarras do dogma.

E por ser um dogma, necessariamente tudo que vem do mercado se torna “bom” e tudo que vem da coerção (apenas estatal, frisa-se) se torna “mau”. O maniqueísmo libertário é absolutamente baseado na crença de que as trocas voluntárias garantem a legitimidade de algo, enquanto a força coerciva contra não-agressores é uma contradição natural e, portanto, ilegítima. Disso para “imposto é roubo”, é só um passo. O que nos leva a próxima tese libertária.



6ª Tese
Imposto é Roubo

A tese libertária de que o imposto (entendido como tributação) é um roubo, se dá pela mesma razão a qual ele considera o Estado ilegítimo. O libertário crê que somente serviços oferecidos pelo mercado, pela oferta e demanda não-coercitiva, são legítimos. Mas como expliquei na resposta a tese 2 (sobre o Estado), nenhum libertário soube explicar apropriadamente como que uma instituição tão “má” se tornou o modus operandi da humanidade pelos últimos 10 mil anos.

Como dito anteriormente, direitos naturais não existem. O que existe é a lei da sobrevivência e uns guerreando ou seletivamente cooperando com os outros para sobreviver, a depender das circunstâncias. Para afirmar que o imposto é um roubo é necessário considerar que o Estado é ilegítimo e que, portanto, tudo que vem dele é desprezível. Mas se o Estado é uma organização territorial e atemporal, baseada em poder e necessidade, então o Estado é apenas um conjunto de instituições onde pessoas assumem um papel de responsabilidade pública (ou seja, não-individual). Trata-se de um poder não-financeiro e baseado mais na cultura do que no interesse imediatista.

Esta é a função moderna dos estados-nação. É verdade que no passado os Estados já foram bem tirânicos, baseados em escravidão, em domínio absoluto da terra por um monarca ou coisa semelhante. Mas, este Estado opressor sempre foi baseado nos mesmos valores da propriedade privada e da lei do mais forte. Duas leis que, no libertarianismo, seriam supervalorizadas.

O que é um Rei absoluto se não um proprietário com uma força armada maior e com elites que o sustentam no poder?

Imposto não é roubo se você direta ou indiretamente negocia o quanto quer pagar de imposto. No passado, os súditos de um Rei não tinham nenhuma voz nas decisões do monarca. Logo, o imposto que ele cobrava poderia muito bem ser considerado um roubo, uma vez que não era negociado entre súdito e Rei, mas imposto pelo Rei através do uso da força.

Nos estados-nação moderno a figura do súdito deu lugar a do cidadão. O Estado reconhece em você direitos individuais. Quando o Estado lhe reconhece direitos, automaticamente ele cria deveres que ele próprio deve seguir. Diferente da sociedade consumista libertária, onde a figura do cidadão se transforma apenas na figura do consumidor. O contrato entre consumidor e produtor é baseado tão e unicamente nos resultados. Isso significa que não existem direitos ou deveres entre um consumidor e um produtor, existem apenas interesses. Dito isso, um produtor monopolista ou um cartel pode estabelecer um preço exorbitante que, se não houver alternativa a ele, não haverá alteração. Especialmente porque o consumidor será o elo mais fraco desta relação. E isso pode ser considerado um roubo.

O imposto nos estados-nação, nas democracias constitucionais é uma troca de direitos e deveres entre Estado e cidadão. O contribuinte contribui com o Estado ao passo que o Estado garante o uso desta contribuição para promover a segurança do indivíduo e demais providências que estejam chancelados pelo processo político. Entendemos Estado aqui como um conjunto de instituições de caráter público.

O libertário precisa entender a diferença entre processo político não-financeiro e público e o processo financeiro e privado. A política, entendida como a relação entre cidadão e Estado, é baseada numa troca de confiança. É verdade que o Estado tem o braço armado. Mas também é verdade que segundo a tradição constitucional, o exército é chamado de “o povo em armas”. E o é efetivamente. De onde vem os soldados, se não do próprio povo? Cada militar é também um cidadão. Um indivíduo. Ele exerce uma função, um trabalho público nas Forças Armadas. Mas daí a dizer que o Estado tem uma “vontade própria” é um salto lógico sem qualquer base conceitual. A própria consideração de que, com apoio popular, os militares podem derrubar um governo tirânico é uma consideração que refuta a tese libertária de que o monopólio do uso da força pelo Estado é ilegítimo. O Estado não é uma pessoa. Logo, ele não tem o monopólio de nada. Mas um arranjo socialmente aceito.

A verdade é que o Estado não é um Rei personificado. Repito, o Estado não é uma pessoa. O Estado é um conjunto de instituições e de pessoas que trabalham sobre o fundamento de um contrato de necessidade e de equilíbrio de poder. Você é tão Estado quanto o funcionário público. Você tem um documento estatal que comprova que você nasceu (certidão de nascimento). E graças a ele sua individualidade é reconhecida por outras pessoas. Para o Estado, você é um cidadão com direitos. Para o mercado, você é um consumidor com dinheiro. A lógica de ambos os sistemas é consideravelmente diferente. Se você se resume apenas ao conceito de consumidor, então você deixa de ter direitos e passa a ser uma moeda. No caso do Estado, você tem tantos direitos e deveres quanto o Estado também tem direitos e deveres. Logo, é uma troca mais fluida e mais maleável.

Afirmar que o Estado é ilegítimo demanda um grande esforço em ignorar o fato de que o território é escasso no planeta, de que riquezas são disputadas por poderes concentrados e que os indivíduos mais pobres e mais frágeis são sempre os mais afetados pela ausência deste equilíbrio de poderes.

Um homem rico não precisa se preocupar com segurança ou saúde, por exemplo, pois por ser rico ele pode direcionar seus recursos para os melhores serviços de segurança e de saúde privada do mundo. Mas os pobres e miseráveis, que são a grande maioria, dependem ou da caridade destes homens ricos ou da relação de direitos e deveres sociais de uma dada sociedade. Eis, novamente, a diferença entre ser cidadão e ser consumidor.

Ser cidadão independe de sua renda. Você pode ser rico ou pobre, mas diante da lei você é um cidadão com direitos e deveres. Já no mercado, se você for pobre você é um consumidor menos atraente do que o consumidor rico. Isso naturalmente cria uma desigualdade forçada pelas circunstâncias. E como explicado nas teses anteriores, é FALSO afirmar que a sociedade de mercado puro beneficiaria os mais pobres. A verdade é que o mercado puro favorece quem melhor der resultados. E notadamente, quem concentra riqueza tem mais capacidade de gerar resultados do que os vários miseráveis.

Portanto, imposto só pode ser considerado roubo se ele não cumpre com a sua função pública. No caso brasileiro, é evidente que há uma disparidade entre o que é pago pelo contribuinte e o que é entregue pelo Estado. No entanto, quem mais paga imposto no Brasil é justamente o consumidor pobre. Os muito ricos, que vivem de renda, pagam consideravelmente menos. Em nações desenvolvidas, a lógica é inversa. Há mais imposto sobre renda do que sobre consumo. Isso sim favorece os mais humildes ao mesmo tempo em que fornece subsídios para que o contrato entre cidadão e instituições públicas tenha validade.

Você recebe uma série de facilidades no Estado assim que nasce. E dado que o mundo é constituído de escassos territórios habitáveis, querendo ou não você sempre terá de pagar para um proprietário. No caso do Estado, você nasce com o direito inerente de proprietário baseado no jus soli. Por ser brasileiro, a propriedade Brasil também pertence a você. Ou seja, independentemente de sua renda, você já tem direitos apenas por existir. O que garante isso é o seu direito a uma certidão de nascimento, a uma carteira de identidade, ao direito de votar e ser votado numa eleição e assim por diante. Facilidades que você não teria numa sociedade apenas de mercado. Você teria de ter a sorte de nascer numa propriedade onde seus pais conseguiriam registar seu nascimento, e onde este registro fosse válido por todas as outras propriedades do mundo. Seu direito individual seria ameaçado.

Imposto não é roubo, pois ele é apenas a contraparte de um acordo que favorece a todos os indivíduos. Acordo este feito quando você nasceu. Como dito nas teses anteriores, você não escolhe a família onde nasce e nem o território onde nasce. Mas é graças as garantias que este território onde você nasceu lhe deram que você hoje é respeitado como indivíduo legalmente por onde anda. Podemos e devemos questionar como a tributação é feita. Certamente o Brasil não tem uma tributação justa como na Suíça, por exemplo. Mas isso não significa que imposto é sempre roubo e tampouco significa que o mercado seria um arranjo melhor do que o atual.



7º Tese
O Estado é incompatível com a sociedade de mercado

O libertário crê que o Estado impede que o mercado seja eficiente, pois ele sempre irá intervir nas trocas voluntárias. Mas o libertário se esquece que o mercado conhecido hoje, com regras éticas e morais, só é como é pois existe um Estado. O serviço de assassino de aluguel é considerado ilegal, pois há um Estado que assim o considera. E isso não é já uma interferência do Estado no mercado?

Como explicado anteriormente, afirmar que o mercado deve ser puro, sem nenhuma intervenção coercitiva, é afirmar por tabela que o mercado pode e deve oferecer qualquer tipo de serviço ou produto. Desde que tenha uma demanda, todo produto é legítimo no mercado. Mesmo aqueles serviços ou produtos que atentem contra os direitos a vida, a liberdade e a propriedade.

A verdade é que não existiria o nível de internacionalização da economia e da industrialização se não fossem os Estados. Seja no Reino Unido, na Alemanha ou nos Estados Unidos, o Estado sempre teve presença direta, tanto na economia como na organização civil da sociedade.

Por exemplo, foi graças as forças armadas britânicas que a Companhia das Índias Orientais conseguiu se expandir de tal maneira que todo o mundo conhecia seus serviços e suas transações. O que favoreceu também o sistema bancário britânico e o financiamento posterior a industrialização. Foi por isso, especificamente, que a Revolução Industrial ocorreu primeiro no Reino Unido e não em outros países da Europa.

Os EUA começou a se desenvolver quando criou um exército nacional e através disso foi quitando sua dívida do pós-guerra de independência através da exploração do Oeste e da compra de territórios até então europeus. O estado da Lousiana, por exemplo, era uma colonia francesa comprada pelo governo americano. E isso garantiu que mais recursos fossem explorados por mais investidores.

Estados são tão naturais quanto a própria humanidade. Lembrem-se: território + poder + necessidade = Estado. Logo, é impossível abolir o Estado, pois é impossível abolir a questão do território, do poder e da necessidade humana. E caso hipoteticamente todos os Estados modernos existentes deixassem de existir, no dia seguinte o mercado “puro” se reorganizaria para criar novas forças armadas concentradas e novas elites que, a fim de tirar proveito da territorialidade no mundo, formariam novos Estados.

Mas não só pela natureza das coisas o Estado é inevitável, mas pela própria lógica. Se em tese vivemos em AUSÊNCIA DE HIERARQUIA desde a pré-história (afinal o mundo natural não tinha donos), se vivemos em livres trocas desde a pré-história (pois não havia impedimento coercitivo contra os primeiros homens na Terra), então naturalmente os poderes e os interesses se concentram suficientemente para de modo mais eficiente fornecer subsídios para a preservação da vida humana. Eram grupos de caçadores que caçavam mamutes na Idade da Pedra, não um único caçador especialista. Eram pequenos exércitos que defendiam a comida da tribo, não uma agência contratada por quem poderia pagar mais. Eram as famílias que chancelavam o comando familiar das primeiras sociedades nômades, não o presidente de uma agência de justiça que está lá porque pagaram para ele estar lá. A sociedade humana se desenvolveu por causa da civilização. E a civilização só existe porque proprietários primitivos criaram estados para preservar suas propriedades.

A tese libertária é uma utopia per se. Mas mais do que isso, é uma utopia sem qualquer fundamento lógico ou prático. Ele é baseado inteiramente em falácias e pseudoverdades não verificadas. A humanidade tem aperfeiçoado o Estado a 10 mil anos. E foi graças a isso que chegamos ao nível de globalização moderno. Porque não desistimos do Estado, mas o aperfeiçoamos para os novos tempos. Continuidade. Algo fundamental para quem pretende preservar o direito de herança e de propriedade.

Como diria David Hume, em sua questão do ser – dever ser (famosa guilhotina de Hume):

Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar, estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos, quando, de repente, surpreendo-me ao ver que, em vez das cópulas proposicionais usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razão para que algo que parece totalmente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes. 


HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Débora Danowiski. Livro III, Parte I, Seção II. São Paulo, Editora UNESP, 2000, p. 509

Ou seja, há duas composições lógicas para se auferir conhecimento a cerca de algum dado. O empírico e o normativo. A empírica parte do fenômeno como ele é, como ele se apresenta. A normativa parte da ideia de como o fenômeno deveria ser. A ciência é construída em cima da empiria. A religião é construída em cima da normatividade.

Se considerarmos tanto Rothbard quanto David Friedman, percebemos que inevitavelmente ambos partem do “dever ser” e não do “ser”. Logo, suas fundamentações são dogmáticas e fogem da averiguação racional. No entanto, um terceiro importante autor libertário, Hans-Herman Hoppe é mais claro em sua propositura. Ele afirma, categoricamente, que parte de um pressuposto transcendental, metafísico. Isso significa que o próprio Hoppe confirma que o libertarianismo está mais para a religião do que para a ciência. O que significa que a tese libertária é uma profissão de fé e não uma investigação factual a cerca de problemas reais e como elas podem ser resolvidas.


Conclusão

As sete teses apresentadas neste documento são os pontos fundamentais de toda a teoria libertária. Questões específicas de como funcionaria a justiça privada, ou como se organizaria os bairros em sociedades anarco-capitalistas, precisam primeiro responder as questões levantas nestas sete teses. Questões secundárias são secundárias. Aqui eu respondi aos pontos estruturais. Se a doutrina libertária falha em oferecer uma solução para o mundo moderno, então ela falha como utopia. O termo utopia foi cunhada por Thomas More, cuja intenção era projetar uma sociedade não-existente, porém ideal. Utopia significa “não-lugar”, ou ainda “lugar que não existe”.

No sentido mesmo do termo, o libertarianismo é uma utopia. Mas no sentido propositivo, ele não chega nem a ser uma teoria. Não é reconhecido pela academia tradicional pelo simples fato de não corroborar com nenhuma expectativa do teste científico e empírico das validades aparentes. Uma utopia não precisa ser real, afinal trata-se de uma utopia. Mas qualquer projeto de sociedade perfeita (ou próximo a isso) deve partir de preceitos realistas, que fazem parte da humanidade atual e que podem (ou não) serem melhorados na sociedade ideal. O caso do libertarianismo é contrário a tudo o que se espera da razão, da lógica, da empiria e mesmo da reflexão pura. Quando Hoppe afirma que ele parte de um pressuposto transcendental, ele deixa a seara das discussões fenomenológicas e parte para a crença, pura e simplesmente. Hoppe, neste ponto, é mais honesto do que Rothbard e David Friedman. Ele reconhece que sua doutrina é compatível a religião.

E partindo disso, ele defende seus dogmas. A reflexão não é importante aqui. O que importa para o libertário é a crença de que existe a autopropriedade, a crença de que tudo que é feito contra a vontade do dono da autopropriedade é negativo e que somente as trocas voluntárias podem legitimar qualquer coisa na sociedade. O libertário não critica tais dogmas. É incapaz de critica-los. Seria como um cristão negar a existência do Cristo. Uma religião não se sustenta se seus seguidores questionarem os dogmas. Mas uma pequena crítica alheia ao fanatismo demonstra o quanto os dogmas libertários são frágeis.

O Reino dos Céus cristão é uma utopia mais realizável do que o mundo libertário. Pois o Reino dos Céus visa um novo homem. Uma nova realidade para que a utopia cristã se estabeleça. No caso do libertário, ele não quer um novo homem, ele quer um homem que ele acredita que já existe e é aparentemente violado por tudo o que lhe cerca. O libertário fanático que ler este documento talvez sequer dê atenção aos seus argumentos. Poderá ele afirmar que tudo não passa de loucuras de alguém que nunca estudou o libertarianismo. Mesmo que eu afirme que já li todo tipo de obra, já debati exaustivamente por anos estas questões, mesmo este autor prove por A + B sabe do que está falando, o fanático fechará os olhos. Acusará o autor do texto numa bela falácia de ad hominem, sem tocar em nenhum parâmetro do argumento. Pois é isso que ele pode fazer. Ele não tem para onde fugir. Seu dogma precisa se manter inalterado, pois se não deixa de ser dogma. A razão está morta. Sobram apenas os apelos emocionais.

Eu, como defensor da liberdade de consciência, não vejo mal em alguém se declarar libertário. Mas creio que é honesto tanto com o defensor da doutrina como com os leigos no tema o reconhecimento de que o libertarianismo não é uma proposta política ou filosófica. É uma proposta religiosa. Que possui seus profetas, seus dogmas, seus seguidores e seus pastores. É uma religião que possui um inimigo fictício e uma solução simplista e mágica. Não é intenção do libertário melhorar as coisas. É intenção dele combater tudo que lhe é contrário e estabelecer o seu próprio feudo fundamentalista.

Martinho Lutero lutou para que a Igreja Católica deixasse de ser perniciosa com seus fiéis e se tornasse mais honesta com as escrituras. Eu, como liberal clássico, escrevo este documento para que o Libertarianismo assuma seu lugar como uma doutrina religiosa e deixe para a filosofia política, econômica, social e cultural as reflexões e propostas a cerca da liberdade individual humanista. O liberal clássico está a 250 anos tratando destes temas. O libertarianismo, que profana as obras de anarquistas individualistas como Spooner, Stirner e outros, não merece ser considerado uma teoria. Deixemos os anarquistas clássicos, os verdadeiros, em suas teses originais. O individualismo sem mercado, sem defesa intransigente da propriedade privada. O individualismo como expoente de uma verdadeira utopia. Honesta.

Libertarianismo não é anarquismo, não é capitalismo, não é liberalismo e não é sequer individualismo. O Libertarianismo é uma doutrina fundamentalista religiosa baseada no apreço ao consumismo da sociedade moderna e na crise de identidades globais dos estados-nação modernos. Podemos ver o libertariaismo mais como um sintoma dos tempos modernos, não como uma solução. Onde surge fundamentalismos religiosos, é onde carece as estruturas tradicionais da civilização. Este é o presente caso. Jovens de todas as idades abrindo mão de sua cidadania para assumirem-se com orgulho apenas consumidores. Que esta obra sirva de alerta para aqueles que defendem valores humanistas e o progresso da consciência humana enquanto um devir constante e permanente.






01 de Junho de 2017
Roma, Itália

SASHA LAMOUNIER






6 comentários:

  1. Vou ler com bastante apreço e depois te retorno.

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  2. O texto irá ser lido,relido e compreendido com o máximo esforço.

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  3. Estou lendo seu blog...parabéns ...gostei muito....no ítem [1] sobre o corpo sobre propriedade do próprio indivíduo, talvez eu não tenha sabido como interpretar...mas como seria interpretada a escravidão e a lavagem cerebral que ocorre na Coréia do Norte??? As vontades e ações não estariam sob controle do "senhor" ou do Estado?

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    1. Olá Paulo! Obrigado pela leitura!

      Sobre sua questão, acontece que os norte-coreanos nasceram numa cultura já muito servil. E o regime norte-coreano aproveita essa cultura servil para transferir ao Líder Supremo a imagem de "ideal absoluto" da nação. Nós, ocidentais, também temos nossos ideais. Se você idealiza uma casa bacana, com uma Ferrari e uma namorada bonita, isso é o seu "líder supremo". E você fará de tudo para ter o que quer. Ou, será um frustrado por não conseguir o que quer.

      Pode nos parecer estranho uma sociedade louvar tanto um indivíduo. Mas temos de entender que para aquela sociedade, Kim Jong-Un não é uma "pessoa". Ele é um "símbolo". E representa os ideais metafísicos daquelas personalidades.

      Nós somos corpos que se identificam como personalidades (meu nome é Sasha, nascido no Brasil, país ocidental). Eu não sou apenas um "conjunto de carne e ossos". E essa diferença é crucial para compreender as escolhas, as vontades e o próprio movimento da sociedade.

      Espero ter te respondido de algum modo. Se tiver mais questões, sinta-se livre para perguntar!

      Abraços!

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  4. Quando você diz refutar o anarquismo clássico, você fala do anarquismo individualista anti-organizacionista, não é?
    Pois as demais vertentes do anarquismo que realmente atuaram politicamente, como o anarco-coletivismo, o anarco-sindicalismo, o próprio mutualismo Proudhoniano, o anarco-comunismo, o plataformismo, o sintetismo, e os anarquismo contemporâneos e etc, não são na verdade a ausência de organização social e de exercício de poder sobre um território (liquido ou fluido). Todos eles na verdade se organizam através da democracia direta (ou líquida, em alguns casos atuais) e do confederalismo/federalismo. A própria criação do termo "anarquista" no sentido de movimento ideológico, surgiu de uma colocação bastante irônica de Proudhon a respeito de o chamarem de promotor de anarquia (caos). Ele na verdade era um confederalista convicto. O anarquismo clássico organizado não é o fim do estado no sentido amplo, mas o fim do estado como entidade separada e controladora da sociedade civil, já que cada indivíduo teria direito ao voto direto em assembleia e ao mesmo acesso a propriedade do que todos os outros indivíduos (uma igualdade "de facto", diferente da igualdade meritocrática liberal. Por isso o anarquismo faz parte do espectro socialista). Cada comuna, ou pequeno "estado", por assim dizer, se confedera com outros em uma rede, criando assim, na mais utópica das possibilidades, uma confederação internacional, onde todos os estados votam em assembleia, assim como os indivíduos na pólis. Apesar desta ideia ser contrária a suas, ela possui muito mais lastro teórico por trás (não apenas anarquista, mas também de uma série de outras teorias políticas) do que o anarco-individualismo ou o ancap. O anarquismo clássico é contra o estado "burguês" e a qualquer outro estado que seja controlado por alguma oligarquia. Para o anarquista, o único estado legítimo é aquele onde todos participam da política, onde todos tem acesso a propriedade dos meios de produção de maneira igual e onde ele seja pequeno o suficiente para todos se conhecerem, de modo a que o consenso seja mais simples. A soberania é assim dividida igualmente entre todos os indivíduos e entre todas as comunas da confederação, sendo que por ser uma confederação e não uma união federativa, as regras votadas pela confederação regeriam as relações entre comunas e individuos em transito, mas não poderiam forçar uma comuna a adotar medidas, a não ser que sejam os próprios princípios fundamentais da confederação, que caso descumpridos culminariam em desligamento da comuna envolvida. Nesse caso a soberania é fragmentaria e se dá de maneira horizontalizada. Existe hierarquia e exercício de poder, mas é tudo equilibrado de maneira a tudo se contrabalancear em horizontalidade. Desse modo, o anarquismo também se denomina atualmente como confederalismo democrático e municipalismo libertário. Também é classicamente considerado socialismo libertário ou democracia libertária.

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  5. PS - Fiz esta colocação para acrescentar durante a minha leitura do seu texto, que inclusive é excelente. Vi que você respeita o anarquismo como utopia e para mim isso já é sinal de que um debate saudável é viável, mesmo sabendo das divergências entre o liberalismo e o anarquismo organizado. Para mim este debate, que é essencial, precisa ser feito, mas ele é repetitivamente sabotado por estes ancaps e outros tipos de extremistas na internet que apelam sempre para dogmas, verdades absolutas e atemporais, argumentos irrefutáveis e falácias circulares para parecerem que estão sempre certos, liquidando toda a oportunidade de diálogo, pois ao sempre se enxergarem como absolutamente donos da verdade eles nunca são capazes de aceitar críticas (a não ser de seus gurus) ou fazerem autocriticas. O debate, a ação comunicativa é imprescindível para que uma sociedade democrática prospere (apesar de que para mim elementos mais ligados a mutualidade devam prevalecer sobre os ligados ao capital). Para essa democracia se aperfeiçoar, precisa haver um debate respeitável entre os três ramos ideológicos que coexistem na política contemporânea: liberalismo (que eu concordo em partes), socialismo (que eu pertenço a uma das vertentes, apesar de criticar fortemente a mais difundida, por ter se degenerado em tirania e autoritarismo) e conservadorismo (que eu tendo a discordar, mas respeito). Como Voltaire diria: "posso não concordar com o que dizes, mas respeito o seu direito de dizê-lo". Acho que esta frase explica isso, apesar de que para mim, o que foge ao mínimo de tolerância democrática (conforme o paradoxo de Popper) não merece ser respeitado no debate democrático (como esses ancaps, que na verdade querem corroer a democracia, como fascistas e neonazistas, além do socialismo stalinista/maoista). Enfim, é contrapondo diversas ideias e pontos de vistade matizes e matrizes diferentes que se pode chegar a parâmetros éticos satisfatórios e não através de dogmatismo e dos argumentos de natureza teológica que esses "libertários" usam. Eu estou aqui porque perdi dois dias da minha vida discutindo com um deles em nome de "ouvir o meu diferente, o meu outro", mas no final ele não arredou um milímetro de seu ponto de vista enquanto eu abordei diversos. Se existe um "outro", alguém com ponto de vista no espectro liberal, diferente do meu ponto democrata/socialista libertario, que valha a pena debater, este outro está aqui. Estou favoritando o blog e vou acompanhar.

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