Jean Valjean Digital
Por
Sasha Lamounier
Os dois equívocos
Há dois equívocos que costumam confundir
o debate e o entendimento a cerca do liberalismo clássico. Primeiro,
confunde-se o liberalismo clássico com o conservadorismo. O que por si é uma
incongruência. Defender a liberdade é defender o progresso da manifestação do
homem na existência. Portanto, é defender a liberdade de consciência do ser
humano. Já escrevi, inclusive, dois artigos mostrando isso (Liberalismo: de centro e progressista! e
A Vocação progressista do liberalismo).
Em suma, o liberal pode ser conservador da porta de casa para dentro. Porque da
porta de casa para fora, entendemos (os liberais) que o mundo é um verdadeiro
mosaico aberto, cheio de cores, cheiros e expressões diferentes e que, por
isso, todos tem o DIREITO de ser diferentes. Ser liberal é mais do que tolerar o diferente, é defendê-lo!
Isso nos leva ao segundo equívoco. Trata-se
dos libertários! Populares no Brasil graças a certos institutos “liberais”, os
libertários defendem primeiro, a diminuição total do Estado e segundo, a
maximização do “livre-mercado”, fundamentando isso em cima de um “individualismo
máximo”. O problema é que ao colocar a ideia de liberdade em cima de um
individualismo exacerbado, nega-se o princípio maior do liberalismo clássico:
ser livre na medida em que o outro também é livre (princípio da isonomia).
Deste entendimento surgiu o Estado de Direito moderno, que o libertário radical
(anarco-capitalista), renega veementemente.
Os libertários “moderados” colocam o
liberalismo clássico como uma “etapa” rumo ao “libertarianismo”. Ou seja, para
os libertários moderados, qualquer nível de “estatismo” é nocivo para a vida
humana e deve ser combatida. Mesmo que para isso tenha de se “tolerar” um
estado liberal. Essa ideia difusa de “progressão” da liberdade não poderia ser
mais ofensiva e falsa! O liberalismo clássico não é uma “etapa” no projeto de nenhuma
ideologia. O liberalismo clássico é ELE MESMO uma proposta de mundo e de
organização social. Portanto, não somos “etapa” em nenhum processo de
liberdade. Nós, os liberais de tradição, somos um caminho para a própria
liberdade.
Temos, assim, dois problemas de visão
que infernizam o debate intelectual no Brasil (e em certa medida, no mundo). No
caso dos conservadores, tenta-se retornar (ainda que inconscientemente) a uma
época onde a família era à base de uma sociedade (o ideal da família
tradicional). Onde o Estado seria uma derivação das organizações familiares e
não uma entidade secular. Já no caso dos libertários, há uma negação do Estado
em favor do individualismo máximo. Observamos em ambos uma mesma coisa: trata-se
da negação do Estado secular (todos
os homens são iguais perante a lei, não importa suas escolhas individuais).
Através desta negação, conservadores e libertários promovem uma nova versão do “antigo
regime absoluto”. Seja em nome da família e dos bons costumes ou em nome do
indivíduo e seu individualismo autista.
Para o liberal clássico, o Estado é um mediador de interesses individuais. E
por isso é secular! Defendemos a secularização, pois a religião não deve pautar
a vida de sociedades livres, mas sim, são as escolhas de consciência de cada
indivíduo que devem pautar o Estado. Defendemos o Estado como uma apólice de
seguros para as liberdades individuais, preservando a discordância e o
diferente, algo natural na vida humana. O libertário por sua vez, nega o Estado
(mesmo o liberal) em favor do indivíduo no mercado (nega, portanto o cidadão em
favor do consumidor). Assim, o libertário acaba negando o próprio capitalismo
clássico, nascido do liberalismo tradicional. Quando o liberalismo surgiu (“Capitalismo:uma invenção liberal clássica”), surgiu dentro de um contexto histórico que deu
origem tanto ao Estado de Direito (laico, império da lei) quanto ao mercado que
hoje conhecemos. Portanto, o mercado que
o liberal defende é fruto de uma concepção de Estado, não de sua ausência
(o que nos coloca contra libertários e contra conservadores ao mesmo tempo).
Conservadores defendem a ausência do
Estado, para deste modo preservarem a religiosidade e a influência da religião
na sociedade, o que limita a liberdade de consciência individual. Já os
libertários querem um Estado ausente para que suas escolhas mercadológicas
sejam preservadas, ainda que isso limite também sua liberdade de consciência. Em
ambos os casos, trata-se de uma luta contra a liberdade e autonomia do
indivíduo. Trata-se de um engodo. Nem conservadores e nem libertários são
amigos da liberdade.
Com a palavra, os clássicos!
No iluminismo, houve uma ruptura entre a
visão teocêntrica de mundo (Deus como centro do universo) e passou-se para uma
visão antropocêntrica de mundo (o homem como centro do universo). Mas esta
visão antropocêntrica não era e nunca foi individualista! O “homem”, para o
antropocentrismo, são TODOS os homens. É a humanidade em si! Daí surgiu
diferentes formas de organizar a vida em sociedade, visando respeitar o
indivíduo (o ser humano). Trata-se dos três contratualistas clássicos: Thomas
Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau. E também deste princípio surgiram
os direitos humanos, hoje tão importantes na defesa da vida humana.
No contexto do iluminismo, saiu-se do
antigo regime (monarquia absoluta) para o novo regime (democracia, republicano
ou monárquico). Mudou-se também o sistema econômico, antes mercantilista para o
liberalismo econômico (livre-mercado). E finalmente, mudou-se a idealização da
fé (religião) para a razão (ciência). Todas estas mudanças geraram frutos e
reflexões a cerca do indivíduo no meio em que vive. E estas reflexões seriam
permanentes ao longo dos séculos XVII, XVIII, XIX e XX. Fruto do iluminismo
nasceu o liberalismo, o socialismo e o anarquismo. Chegamos hoje ao século XXI,
porém, com uma curiosa situação. Vivemos na negação dos valores iluministas!
Se a razão suplantou a fé após o
iluminismo, hoje vemos movimentos contrários constantes em busca da
reaproximação do homem a Deus (ou da ideia que fazem de um “Deus”). São os
movimentos fundamentalistas (muçulmanos ou evangélicos) e os movimentos
neoconservadores. Ao mesmo tempo, os libertários assumem uma postura dogmática
e baseada em crendice, quando assumem o indivíduo como uma entidade quase
mítica, ignorando a sociedade e as relações diversas que diferentes indivíduos
geram no convívio social e assumindo o “mercado” como solucionador de todos os
problemas. A ditadura ganhou novos ares e novos nomes. Se antes saímos do
antigo regime absoluto monárquico, hoje entramos no absolutismo individualista
ou religioso / ideológico. Nega-se a razão e a empiria em favor de uma “ideia
abstrata perfeita”, tanto do mundo como de si mesmo.
O homem abandonou a investigação.
Abandonou a procura por respostas. O racionalismo suplantou o empirismo. Hoje,
através de uma visão mercantilizada das ideias, procuram-se sempre respostas
prontas (fordismo ideológico). A guerra ideológica é tão e unicamente uma
guerra entre crenças, não entre reflexões. O liberalismo econômico, antes
servido para emancipar as nações, hoje é tão e unicamente instrumento de nações
desenvolvidas contra nações em desenvolvimento. Todas as nações centrais
passaram pelo mercantilismo e por processos protecionistas de suas indústrias
nascentes (EUA, Inglaterra, França e mesmo Alemanha). Mas as nações emergentes
têm seu mercantilismo e seu protecionismo negado
em nome de um “liberalismo econômico” caduco, que nem mesmo as nações centrais
seguem! O próprio EUA, maior defensor da pretensa “liberdade econômica”, é o
principal país que descumpre as
medidas propostas pelo Consenso de Washington.
Sobre a autonomia econômica das nações,
Smith já foi claro: “A riqueza de uma
nação se mede pela riqueza de seu povo, e não pela riqueza dos príncipes.”.
Podendo ser os príncipes tanto os governantes, como as elites financeiras e
políticas de um país.
Contra o individualismo máximo, Adam
Smith, o pai do liberalismo econômico, diria no seguinte trecho, tirado de “Teoria
dos Sentimentos Morais” (TSM, 6) o seguinte: “Essa é a fonte de nossa solidariedade para a desgraça alheia, trocando
de lugar, na imaginação com o sofredor, que podemos ou conceber que ele sente
ou ser afetado por isso.”
E ainda, ele complementa (TSM, 22): “(...) esforça-se tanto quanto possível para
colocar-se na situação do outro, (...) empenhar-se por interpretar da maneira
mais perfeita possível a mudança imaginária de situação sobre a qual se baseia
sua simpatia.”.
Sobre as liberdades individuais e o
direito da emancipação das nações, John Locke nos lembra:
Segundo Tratado do Governo Civil, sobre
a liberdade natural como preceito para a conjugação das sociedades civis: “O homem nasceu, como já foi provado, com um
direito à liberdade perfeita e em pleno gozo de todos os direitos e privilégios
da lei da natureza, assim como qualquer outro homem ou grupo de homens na terra”.
(ST, 87).
E complementa: “Por isso, todas as vezes que um número qualquer de homens se unir em
uma sociedade, ainda que cada um renuncie ao seu poder executivo da lei da
natureza e o confie ao público, lá, e somente lá, existe uma sociedade política
ou civil.”. (ST, 89).
Isso demonstra que, ao contrário do que
se vende pelos institutos liberais e think tanks libertários, o liberalismo é
antes de tudo político e depois
econômico. A liberdade civil, que
garante o direito do homem livre ser livre no seio social, de ter sua liberdade
de consciência, é também o que garantirá que a sociedade se organize
voluntariamente para adotar os programas econômicos que melhor lhes aprouver. Toda
tentativa de tentar impor o liberalismo econômico numa sociedade deve ser vista
como uma ofensa à soberania nacional e como um ataque contra a liberdade de
consciência. O liberalismo econômico não é pré-condição para o liberalismo
civil, mas o liberalismo civil é pré-condição para o econômico.
Portanto, o que o liberal clássico
defende que o diferencia tanto de conservadores quanto de libertários?
I. A
necessidade do Estado e sua importância para a preservação e maximização das
liberdades individuais em sociedade;
II. A
defesa absoluta das liberdades civis e do direito a vida, liberdade e
propriedade, como preceitos básicos para a manifestação do homem na existência;
III. A
secularização do Estado e o laicismo, colocando na Lei e no Direito a
prerrogativa de mediar às tensões e interesses individuais, sempre se
respeitando os direitos individuais citados nos pontos I e II;
IV. O
direito absoluto de liberdade de
consciência, onde cada cidadão, protegido pela lei, pode expressar-se
livremente sobre o que pensa, podendo ele investigar a verdade por conta
própria, sem qualquer impedimento ou constrangimento por parte de quem quer que
seja.
Conclusão
Em suma, a autonomia individual é o
objetivo maior do liberalismo clássico. Duvide de tudo o que lhe vendem como
ideias prontas, pois foi contra isso que os liberais clássicos lutaram no
passado. Contra as “cartilhas” dogmáticas da Igreja, contra o poder absoluto do
Rei, contra a tentativa de limitar o homem e sua busca pela verdade. O que
diriam os antigos enciclopedistas dos atuais movimentos “doutrinários”? O que
diria Voltaire e Montesquieu do Estado servidor dos interesses comerciais e não
dos cidadãos? Antes de o indivíduo ser um consumidor, ele deve ser um cidadão.
Pois somente sendo livre socialmente é que se pode ser livre economicamente.
As bandeiras progressistas do passado
estão ameaçadas por novimentos absolutistas modernos, travestidos de defensores
da liberdade. Fazendo uma comparação com a tradição cristã, se o Anticristo vem
em pele de cordeiro, então é bem verdade que ele já está entre nós.
Seja como Jean Valjean em “Os Miseráveis”.
Desafie o poder. Todo tipo de poder. Seja ele financeiro, estatal ou
ideológico. Desafie usando sua inteligência, usando a investigação contra a crendice. Usando a empiria contra o dogma. Usando a liberdade contra a opressão. Somente assim você será realmente livre e poderá encontrar um
caminho para sua expressão no mundo.
Obrigado pela leitura,
Sasha Lamounier
Um Liberal Clássico no mundo moderno
Sasha Lamounier
Um Liberal Clássico no mundo moderno
Porto - Portugal
27 de Março de 2016
(Domingo de Páscoa)
(Domingo de Páscoa)