27/03/2016

Jean Valjean Digital


Jean Valjean Digital

Por

Sasha Lamounier



Os dois equívocos

Há dois equívocos que costumam confundir o debate e o entendimento a cerca do liberalismo clássico. Primeiro, confunde-se o liberalismo clássico com o conservadorismo. O que por si é uma incongruência. Defender a liberdade é defender o progresso da manifestação do homem na existência. Portanto, é defender a liberdade de consciência do ser humano. Já escrevi, inclusive, dois artigos mostrando isso (Liberalismo: de centro e progressista! e A Vocação progressista do liberalismo). Em suma, o liberal pode ser conservador da porta de casa para dentro. Porque da porta de casa para fora, entendemos (os liberais) que o mundo é um verdadeiro mosaico aberto, cheio de cores, cheiros e expressões diferentes e que, por isso, todos tem o DIREITO de ser diferentes. Ser liberal é mais do que tolerar o diferente, é defendê-lo!

Isso nos leva ao segundo equívoco. Trata-se dos libertários! Populares no Brasil graças a certos institutos “liberais”, os libertários defendem primeiro, a diminuição total do Estado e segundo, a maximização do “livre-mercado”, fundamentando isso em cima de um “individualismo máximo”. O problema é que ao colocar a ideia de liberdade em cima de um individualismo exacerbado, nega-se o princípio maior do liberalismo clássico: ser livre na medida em que o outro também é livre (princípio da isonomia). Deste entendimento surgiu o Estado de Direito moderno, que o libertário radical (anarco-capitalista), renega veementemente.

Os libertários “moderados” colocam o liberalismo clássico como uma “etapa” rumo ao “libertarianismo”. Ou seja, para os libertários moderados, qualquer nível de “estatismo” é nocivo para a vida humana e deve ser combatida. Mesmo que para isso tenha de se “tolerar” um estado liberal. Essa ideia difusa de “progressão” da liberdade não poderia ser mais ofensiva e falsa! O liberalismo clássico não é uma “etapa” no projeto de nenhuma ideologia. O liberalismo clássico é ELE MESMO uma proposta de mundo e de organização social. Portanto, não somos “etapa” em nenhum processo de liberdade. Nós, os liberais de tradição, somos um caminho para a própria liberdade.

Temos, assim, dois problemas de visão que infernizam o debate intelectual no Brasil (e em certa medida, no mundo). No caso dos conservadores, tenta-se retornar (ainda que inconscientemente) a uma época onde a família era à base de uma sociedade (o ideal da família tradicional). Onde o Estado seria uma derivação das organizações familiares e não uma entidade secular. Já no caso dos libertários, há uma negação do Estado em favor do individualismo máximo. Observamos em ambos uma mesma coisa: trata-se da negação do Estado secular (todos os homens são iguais perante a lei, não importa suas escolhas individuais). Através desta negação, conservadores e libertários promovem uma nova versão do “antigo regime absoluto”. Seja em nome da família e dos bons costumes ou em nome do indivíduo e seu individualismo autista.

Para o liberal clássico, o Estado é um mediador de interesses individuais. E por isso é secular! Defendemos a secularização, pois a religião não deve pautar a vida de sociedades livres, mas sim, são as escolhas de consciência de cada indivíduo que devem pautar o Estado. Defendemos o Estado como uma apólice de seguros para as liberdades individuais, preservando a discordância e o diferente, algo natural na vida humana. O libertário por sua vez, nega o Estado (mesmo o liberal) em favor do indivíduo no mercado (nega, portanto o cidadão em favor do consumidor). Assim, o libertário acaba negando o próprio capitalismo clássico, nascido do liberalismo tradicional. Quando o liberalismo surgiu (“Capitalismo:uma invenção liberal clássica”), surgiu dentro de um contexto histórico que deu origem tanto ao Estado de Direito (laico, império da lei) quanto ao mercado que hoje conhecemos. Portanto, o mercado que o liberal defende é fruto de uma concepção de Estado, não de sua ausência (o que nos coloca contra libertários e contra conservadores ao mesmo tempo).

Conservadores defendem a ausência do Estado, para deste modo preservarem a religiosidade e a influência da religião na sociedade, o que limita a liberdade de consciência individual. Já os libertários querem um Estado ausente para que suas escolhas mercadológicas sejam preservadas, ainda que isso limite também sua liberdade de consciência. Em ambos os casos, trata-se de uma luta contra a liberdade e autonomia do indivíduo. Trata-se de um engodo. Nem conservadores e nem libertários são amigos da liberdade.



Com a palavra, os clássicos!

No iluminismo, houve uma ruptura entre a visão teocêntrica de mundo (Deus como centro do universo) e passou-se para uma visão antropocêntrica de mundo (o homem como centro do universo). Mas esta visão antropocêntrica não era e nunca foi individualista! O “homem”, para o antropocentrismo, são TODOS os homens. É a humanidade em si! Daí surgiu diferentes formas de organizar a vida em sociedade, visando respeitar o indivíduo (o ser humano). Trata-se dos três contratualistas clássicos: Thomas Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau. E também deste princípio surgiram os direitos humanos, hoje tão importantes na defesa da vida humana.

No contexto do iluminismo, saiu-se do antigo regime (monarquia absoluta) para o novo regime (democracia, republicano ou monárquico). Mudou-se também o sistema econômico, antes mercantilista para o liberalismo econômico (livre-mercado). E finalmente, mudou-se a idealização da fé (religião) para a razão (ciência). Todas estas mudanças geraram frutos e reflexões a cerca do indivíduo no meio em que vive. E estas reflexões seriam permanentes ao longo dos séculos XVII, XVIII, XIX e XX. Fruto do iluminismo nasceu o liberalismo, o socialismo e o anarquismo. Chegamos hoje ao século XXI, porém, com uma curiosa situação. Vivemos na negação dos valores iluministas!

Se a razão suplantou a fé após o iluminismo, hoje vemos movimentos contrários constantes em busca da reaproximação do homem a Deus (ou da ideia que fazem de um “Deus”). São os movimentos fundamentalistas (muçulmanos ou evangélicos) e os movimentos neoconservadores. Ao mesmo tempo, os libertários assumem uma postura dogmática e baseada em crendice, quando assumem o indivíduo como uma entidade quase mítica, ignorando a sociedade e as relações diversas que diferentes indivíduos geram no convívio social e assumindo o “mercado” como solucionador de todos os problemas. A ditadura ganhou novos ares e novos nomes. Se antes saímos do antigo regime absoluto monárquico, hoje entramos no absolutismo individualista ou religioso / ideológico. Nega-se a razão e a empiria em favor de uma “ideia abstrata perfeita”, tanto do mundo como de si mesmo.

O homem abandonou a investigação. Abandonou a procura por respostas. O racionalismo suplantou o empirismo. Hoje, através de uma visão mercantilizada das ideias, procuram-se sempre respostas prontas (fordismo ideológico). A guerra ideológica é tão e unicamente uma guerra entre crenças, não entre reflexões. O liberalismo econômico, antes servido para emancipar as nações, hoje é tão e unicamente instrumento de nações desenvolvidas contra nações em desenvolvimento. Todas as nações centrais passaram pelo mercantilismo e por processos protecionistas de suas indústrias nascentes (EUA, Inglaterra, França e mesmo Alemanha). Mas as nações emergentes têm seu mercantilismo e seu protecionismo negado em nome de um “liberalismo econômico” caduco, que nem mesmo as nações centrais seguem! O próprio EUA, maior defensor da pretensa “liberdade econômica”, é o principal país que descumpre as medidas propostas pelo Consenso de Washington.

Sobre a autonomia econômica das nações, Smith já foi claro: “A riqueza de uma nação se mede pela riqueza de seu povo, e não pela riqueza dos príncipes.”. Podendo ser os príncipes tanto os governantes, como as elites financeiras e políticas de um país.

Contra o individualismo máximo, Adam Smith, o pai do liberalismo econômico, diria no seguinte trecho, tirado de “Teoria dos Sentimentos Morais” (TSM, 6) o seguinte: “Essa é a fonte de nossa solidariedade para a desgraça alheia, trocando de lugar, na imaginação com o sofredor, que podemos ou conceber que ele sente ou ser afetado por isso.”

E ainda, ele complementa (TSM, 22): “(...) esforça-se tanto quanto possível para colocar-se na situação do outro, (...) empenhar-se por interpretar da maneira mais perfeita possível a mudança imaginária de situação sobre a qual se baseia sua simpatia.”.

Sobre as liberdades individuais e o direito da emancipação das nações, John Locke nos lembra:

Segundo Tratado do Governo Civil, sobre a liberdade natural como preceito para a conjugação das sociedades civis: “O homem nasceu, como já foi provado, com um direito à liberdade perfeita e em pleno gozo de todos os direitos e privilégios da lei da natureza, assim como qualquer outro homem ou grupo de homens na terra”. (ST, 87).

E complementa: “Por isso, todas as vezes que um número qualquer de homens se unir em uma sociedade, ainda que cada um renuncie ao seu poder executivo da lei da natureza e o confie ao público, lá, e somente lá, existe uma sociedade política ou civil.”. (ST, 89).

Isso demonstra que, ao contrário do que se vende pelos institutos liberais e think tanks libertários, o liberalismo é antes de tudo político e depois econômico. A liberdade civil, que garante o direito do homem livre ser livre no seio social, de ter sua liberdade de consciência, é também o que garantirá que a sociedade se organize voluntariamente para adotar os programas econômicos que melhor lhes aprouver. Toda tentativa de tentar impor o liberalismo econômico numa sociedade deve ser vista como uma ofensa à soberania nacional e como um ataque contra a liberdade de consciência. O liberalismo econômico não é pré-condição para o liberalismo civil, mas o liberalismo civil é pré-condição para o econômico.

Portanto, o que o liberal clássico defende que o diferencia tanto de conservadores quanto de libertários?

I.              A necessidade do Estado e sua importância para a preservação e maximização das liberdades individuais em sociedade;

II.              A defesa absoluta das liberdades civis e do direito a vida, liberdade e propriedade, como preceitos básicos para a manifestação do homem na existência;

III.           A secularização do Estado e o laicismo, colocando na Lei e no Direito a prerrogativa de mediar às tensões e interesses individuais, sempre se respeitando os direitos individuais citados nos pontos I e II;

IV.           O direito absoluto de liberdade de consciência, onde cada cidadão, protegido pela lei, pode expressar-se livremente sobre o que pensa, podendo ele investigar a verdade por conta própria, sem qualquer impedimento ou constrangimento por parte de quem quer que seja.


Conclusão

Em suma, a autonomia individual é o objetivo maior do liberalismo clássico. Duvide de tudo o que lhe vendem como ideias prontas, pois foi contra isso que os liberais clássicos lutaram no passado. Contra as “cartilhas” dogmáticas da Igreja, contra o poder absoluto do Rei, contra a tentativa de limitar o homem e sua busca pela verdade. O que diriam os antigos enciclopedistas dos atuais movimentos “doutrinários”? O que diria Voltaire e Montesquieu do Estado servidor dos interesses comerciais e não dos cidadãos? Antes de o indivíduo ser um consumidor, ele deve ser um cidadão. Pois somente sendo livre socialmente é que se pode ser livre economicamente.

As bandeiras progressistas do passado estão ameaçadas por novimentos absolutistas modernos, travestidos de defensores da liberdade. Fazendo uma comparação com a tradição cristã, se o Anticristo vem em pele de cordeiro, então é bem verdade que ele já está entre nós.

Seja como Jean Valjean em “Os Miseráveis”. Desafie o poder. Todo tipo de poder. Seja ele financeiro, estatal ou ideológico. Desafie usando sua inteligência, usando a investigação contra a crendice. Usando a empiria contra o dogma. Usando a liberdade contra a opressão. Somente assim você será realmente livre e poderá encontrar um caminho para sua expressão no mundo.






Obrigado pela leitura,

Sasha Lamounier
Um Liberal Clássico no mundo moderno

Porto - Portugal
27 de Março de 2016
(Domingo de Páscoa)



5 comentários:

  1. Parabéns e obrigado pelo texto, Sasha.

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  2. " Seja como Jean Valjean em “Os Miseráveis”. Desafie o poder. Todo tipo de poder. Seja ele financeiro, estatal ou ideológico. Desafie usando sua inteligência, usando a investigação contra a crendice. Usando a empiria contra o dogma. Usando a liberdade contra a opressão. Somente assim você será realmente livre e poderá encontrar um caminho para sua expressão no mundo. " - que isso, bom demais.

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