PARTE 1
Contextualização e Teoria
Introdução
Antes de
enveredar pela análise dos efeitos geopolíticos da pandemia do COVID-19,
precisamos esclarecer algumas questões para o leitor não acostumado com o
jargão das relações internacionais. Como a intenção deste artigo é apresentar
ao leitor mais leigo uma contextualização de tudo o que acontece no mundo
contemporâneo, optei por uma linguagem mais simples, mais objetiva e mais
didática para tornar claro as minhas pessoais interpretações que se
apresentarão ao longo de todo o artigo.
Para dar início
aos trabalhos, precisamos diferenciar dois conceitos: Estado e Nação[1].
A Nação é um
grupo humano formado por uma mesma língua, cultura, crenças, cosmovisão de
mundo e compartilhada experiência coletiva (consciência nacional). Trata-se da
narrativa que um povo faz para si mesmo ao longo do tempo. Essa narrativa pode
mudar de acordo com eventos-chave, mas em todo caso, ela sempre existe. Do
mesmo modo que um indivíduo precisa narrar uma história sobre si mesmo para ter
coerência em sua vida, os povos também precisam. De onde viemos, quem somos, o
que nos representa e para onde vamos. Esse enquadramento da realidade coletiva
é o que constitui o conceito nação.
Já Estado é o conjunto de instituições que administram uma nação. Pode
ser de qualquer tipo, esfera, intensidade ou densidade. O importante aqui é que
o Estado nada mais é do que uma forma da nação organizar sua vida política e
social. A forma do Estado normalmente deriva da experiência coletiva
(enquadramento) de um povo diante da realidade. Desde as reformas iluministas
na Europa, onde o poder absoluto do Rei deixou de ser centralizador e passou a
ser diversificado, temos a seguinte estrutura:
O conjunto
povo-cultura-território constitui a nação. Mas esta nação é administrada por um
conjunto de instituições. Estas instituições é o que chamamos de Estado. E este
Estado precisa de uma agência administrativa que dirige os seus afazeres. Esta
agência denominamos de governo. Daqui surge o conceito de Estado-Nação moderno.
Em resumo:
Nação
|
Indivíduos,
grupos sociais, religiões, empresas privadas, sociedade civil etc.
|
Esfera
cultural e abstrata, condizente com o passado, o presente e as perspectivas
de futuro
|
Estado
|
Instituições
públicas: Governo Federal, Estadual, Municipal, STF, Congresso Nacional,
Presidência da República, MPF, Polícia Federal etc.
|
Esfera
estável e permanente, que reproduz as aspirações da sociedade no tempo e no
espaço
|
Governo
|
Agências
de administração das instituições: Presidente da República, Governador de
Estado, Prefeito de Cidade, Desembargador, Ministro do STF, Deputado, Senador
etc.
|
Esfera
mutável e impermanente, reproduz os anseios da sociedade no curto e médio
prazos, administra questões urgentes e objetivas, pragmáticas
|
O que é geopolítica, portanto?[2]
Geopolítica,
como o nome diz, é o jogo político entre os estados-nacionais do mundo inteiro.
O Brasil é um espaço geográfico que possui uma Nação e um Estado que o
administra. Este Estado é reconhecido como pessoa jurídica ao redor do mundo, o
que nos permite reclamar o direito de estado soberano (independente) frente aos
demais Estados. A política entre países perfaz a geopolítica. Como diz o velho
ditado: geografia é destino. Ou seja, a geografia de um país, suas riquezas,
seu povo, sua economia, suas potencialidades, tudo isso são recursos que
participam das relações internacionais, direta ou indiretamente.
Minha Interpretação da Geopolítica
Como adepto do realismo clássico (Hans Morgenthau, 1954) na teoria das
relações internacionais, eu tendo a encarar o jogo geopolítico do ponto de
vista dos Estados-Nacionais. Ou seja, compreendo que os Estados agem por
intermédio de seus interesses internos e externos, tal como os indivíduos. Dentro
da teoria das relações internacionais, há ainda duas
vertentes de interpretação no que tange ao grau de relacionamentos entre as
nações. Temos a teoria da dependência (desenvolvida por autores como Immanuel
Wallerstein e Celso Furtado), na qual se afirma que o desenvolvimento entre nações
é desigual e sempre tende a favorecer as nações mais ricas e poderosas diante
das pobres. Esta teoria indica que as grandes nações teriam esferas de
influência social, cultural, económico e político sobre outras, onde
estabeleceriam dominância.
Mas temos também
outra vertente, de cariz um pouco mais conservador e menos crítico, onde se
afirma que as relações internacionais na verdade se baseiam numa interdependência
(Keohane & Nye, 1977) fluida entre sociedades, de modo que não há diferença
entre decisões dos Estados e das organizações privadas, e sim influência mútua
e constante. Para os adeptos desta interpretação, os Estados-Nacionais não
teriam maior ou menor poder sobre outros visto que num cenário de intensa
globalização, onde empresas e a sociedade civil atuam cada vez mais de modo interconectado,
são as relações entre sociedades que determinam a geopolítica e não os
interesses dos Estados, puramente.
Como um realista
clássico, tendo a crer que existe certa confluência nas duas vertentes
supracitadas. Do ponto de vista das nações desenvolvidas, cujas empresas são
internacionalizadas o suficiente ao ponto de influir no teatro global, é claro
que a interdependência interessa, pois estas grandes companhias projetam o
poder nacional do país de origem pelo simples fato de controlar os recursos
financeiros primários para o mesmo. Mas do ponto de vista da dependência, é
notório que nações pouco industrializadas e muito focadas em commodities terão
menor projeção internacional do que as industrializadas e desenvolvidas. Exemplo
disso é a comparação entre Índia e Brasil. Entre os dois, quem o leitor(a) acha
que é mais poderoso?
Força económica e força militar: a
projeção de poder de um Estado-Nação
Ambos fazem
parte dos BRICS (grupo de países emergentes formado por Brasil, Rússia, Índia,
China e África do Sul). Ambos, em teoria, são superpotências em
desenvolvimento. Porém, Índia tem um papel regional no sul asiático muito mais
pertinente do que o Brasil tem na América do Sul. O PIB da Índia é de 2
trilhões e 900 bilhões de dólares, enquanto do Brasil é de 1,8 trilhões de
dólares. O orçamento militar da Índia é de 66 bilhões de dólares e o do Brasil
é de 27 bilhões. A Índia é um país que possui uma complexidade económica maior,
com grande investimento em Tecnologias da Informação, já o Brasil cada vez mais
se desindustrializa e aprofunda sua vocação agrícola[3].
Todos os
Estados-Nacionais contemporâneos vivem sob a égide do capitalismo de escala
internacional. Não há um só país do mundo que não esteja inserido na cadeia
produtiva global. Alguns estão mais do que outros, mas todos estão (até Cuba e
a Coreia do Norte). Neste sentido, o aspecto económico é fundamental no
entendimento das relações entre Estados. É claro que seria muito pueril ou
simplista afirmar que a economia é a única ponta de lança da geopolítica, mas todavia
ela exerce um papel central. Por exemplo, não podemos falar das relações entre
União Europeia e Rússia sem falar dos gasodutos que levam gás da Rússia a
Europa. Não podemos falar das relações entre Brasil e China se não
considerarmos que o país asiático é o maior parceiro comercial do Brasil.
Mas o que é a
economia do século XXI e como isso afeta a geopolítica? Como vimos, trata-se de
uma economia globalizada e baseada nas grandes transnacionais que produzem em
escala global. Vivemos num mundo onde a produção não está mais dependente de um
território ou dos recursos de um país, mas recebe abundantes facilidades de
todas as partes do planeta. Esta cadeia produtiva, evidentemente, é afetada
pelas taxas de importação e pela infraestrutura de cada país, podendo aumentar
ou diminuir a sua intensidade. Em todo caso, pelo menos todas as nações do G20
possuem transacionais importantes. O que nos leva a questão-chave desta
interpretação: o capitalismo financeiro.
Uma vez que o
problema da alocação de recursos foi globalizado, o poder saiu da esfera
puramente produtiva-local para a esfera financeira-global. Não importa mais
tanto quem produz, mas sim quem financia quem produz. Neste sentido, estamos
falando de um capitalismo fundamentalmente monetário. O poder, neste contexto,
está nas moedas e suas taxas de juro. Segundo a Lei de Metcalfe, originada da
computação, “o valor de um sistema de
comunicação cresce na razão do quadrado do número de usuários do sistema”.
Se aplicarmos a mesma lei para as moedas, veremos que o valor de uma moeda
cresce ao passo que ela é utilizada e aceita como meio de troca. Isso significa
que, para uma moeda ser forte, ela tem de ser confiável, divisível, aceita
amplamente e lastreada em algum recurso ou suporte que garanta o seu valor real.
Na política
financeira internacional, sabemos que uma moeda é poderosa quando ela é usada
por muitos estados-nacionais como reserva de valor. Ou seja, as reservas
internacionais dos países estão em alguma das moedas mais utilizadas do mundo,
perfazendo assim o seu lastro para aquele país. Atualmente temos quatro moedas
que estão inseridas neste patamar: o dólar norte-americano (representando mais
de 61,82% das reservas mundiais), o Euro (representando 20,24%), o Yen japonês
(com 5,25%) e a Libra Esterlina britânica (com 4,54%). A China vem logo em
seguida, com o Yuan sendo usado por 1,95% das reservas. Os restantes 6,19% são
outras moedas. Isso significa que para grande parte do mundo a moeda de maior
valor é o dólar norte-americano, o que dá aos EUA a capacidade de gerir o valor
de sua moeda e influenciar na produtividade de praticamente todo o planeta[4].
Seguindo por
esta lógica, se são as moedas que controlam o fluxo financeiro e produtivo do mundo,
precisamos nos perguntar: quem são as grandes nações? É fácil afirmar que os
EUA é o maior país do mundo, quer seja em termos económicos ou militares. Mas o
poder de um Estado-Nação não é medido apenas por estes dois fatores. Têm de se
avaliar a conjuntura! A China, por exemplo, tem a terceira mais poderosa Força
Armada do mundo e o segundo maior PIB do planeta, mas o Yuan (moeda chinesa)
está lastreado em dólar norte-americano. Isso significa que, se a China tem um
grande depósito de reservas internacionais em dólar, ela possui uma grande
capacidade de liquidez financeira e pelo seu tamanho, ela pode afetar o dólar
tanto quanto os próprios norte-americanos.
Diferente situação acontece diante do Euro. A União Europeia possui a
segunda moeda de maior valor internacional, de modo que ela compete com o
dólar, ao invés de depender dele. Ao competir com o dólar, porém, ela não está
isenta de ser afetada pela valorização ou desvalorização da moeda
norte-americana. Das grandes nações, resta-nos indagar sobre a Rússia, que
embora não seja uma potência económica, é uma potência militar. No caso da
Rússia, a moeda rublo está lastreada em 30% euro, 18,2% ouro e 14,2% em yuan (moeda chinesa).
O restante está em dólar norte-americano, representando 37,6% das reservas
russas[5].
Portanto, temos
aqui a resposta para determinar quais são os principais atores da geopolítica
internacional. Para classifica-los, utilizamos algumas referências. Na teoria
das relações internacionais, nós temos potências regionais, potências médias,
potências emergentes, estados falidos, estados fantoches, superpotências,
hiperpotências e uma série de outras definições. Para deixar este artigo mais
simples e mais didático, usarei apenas três definições: potência regional,
superpotência e estado fantoche.
A. Superpotência;
Uma
superpotência é um Estado-Nacional cuja influência social, económica, cultural,
política, militar e tecnológica é exercida em escala global. Ou seja, trata-se
de um país que influencia os demais não importando região geográfica ou
proximidade cultural, visto que seu poder é grande o suficiente para afetar a
todos.
B. Potência
regional;
Uma potência
regional é um Estado-Nação cuja influência social, económica, cultural,
política, militar e tecnológica abrange a sua região geográfica. Normalmente
ela está dentro do arco de influência das superpotências, mas exerce um papel
importante no teatro das nações de modo mais ou menos independente.
C. Estado
fantoche;
Um Estado
fantoche é um Estado-Nação que depende de uma potência regional ou global para
tomar decisões estratégicas de cunho político, militar, diplomático, económico
ou mesmo social e cultural. É comumente também conhecido como estado-cliente.
Análise
de Conjuntura:
Por tais
definições, podemos afirmar que até Janeiro de 2020 o mundo tinha pelo menos duas
superpotências. Trata-se dos Estados Unidos da América e da China. Embora os
EUA ainda seja o país mais poderoso do mundo, o poder chinês é muito maior do
que os demais países e está em franca expansão. Logo, trata-se evidentemente de
uma superpotência cuja expressão global é óbvia. Possui a terceira maior Força
Armada do mundo com um orçamento de 237 bilhões de dólares e o segundo maior
PIB do planeta.
A União Europeia
não é um país, mas um bloco composto por pelo menos duas grandes potências:
França e Alemanha. Como a política e economia destas nações dependem da União
Europeia, iremos considerar para efeitos de análise como se a União Europeia
fosse um país. Assim o sendo, podemos afirmar que se trata também de uma
superpotência, visto que ela rivaliza com os EUA em tamanho de PIB e possui uma
Força Armada competente (orçamento militar dos países da Zona do Euro chega a
200 bilhões de dólares).
Em termos de
potências regionais, nós temos claramente os países emergentes (Brasil, Rússia,
Índia, África do Sul e México), como também alguns países tradicionais como Japão
e Reino Unido (pós-Brexit). Já quanto aos Estados fantoches, podemos citar a
Síria (fantoche da Rússia), a Venezuela (também fantoche da Rússia), Coreia do
Norte (fantoche da China), Israel (fantoche dos EUA), Coreia do Sul (fantoche
dos EUA) e assim por diante. E porque estes países citados como fantoches se
enquadram nesta nomenclatura? Porque de algum modo, todos eles demonstraram
estar alinhados economicamente e estrategicamente com alguma superpotência. Não
significa que sempre foram estados fantoches, mas neste momento se apresentam
como tal.
O mesmo se
sucede com o Brasil, que embora seja uma potência regional, deixa a desejar
neste papel e possui um governo extremamente alinhado com os EUA, tornando-o
potencialmente um Estado fantoche deste país.
Para facilitar o
que foi dito anteriormente, observe o seguinte quadro interpretativo:
Países
|
Poder Económico
|
Poder Militar
|
Estatuto Internacional
|
EUA
|
US$
21 trilhões
|
1º
|
SP
|
China
|
US$ 14
trilhões
|
3º
|
SP
|
U.E.
|
US$ 18
trilhões
|
FRA-7º,
ITA 12º, ALE, 13º, ESP, 20º, POL, 21º
Membros
da OTAN
|
PR
|
Rússia
|
US$ 1,6
trilhão
|
2º
|
PR
|
Japão
|
US$ 5,1
trilhão
|
5º
|
PR
|
Reino
Unido
|
US$ 2,7
trilhão
|
8º
|
PR
|
Índia
|
US$ 2,9
trilhão
|
4º
|
PR
|
Brasil
|
US$ 1,8
trilhão
|
10º
|
PR
|
México
|
US$ 1,2
trilhão
|
38l
|
PR
|
Israel
|
US$ 387
bilhões
|
18º
|
EF
|
Irã
|
US$ 458
bilhões
|
14º
|
EF
|
Arábia
Saudita
|
US$ 779
bilhões
|
17º
|
EF
|
Síria
|
Sem Dados
|
55º
|
EF
|
Venezuela
|
US$ 70 bilhões
|
41º
|
EF
|
Coreia
do Norte
|
US$ 17
bilhões*
|
25º
|
EF
|
Coreia
do Sul
|
US$ 1,6
trilhão
|
6º
|
EF
|
África
do Sul
|
US$ 358
bilhões
|
29º
|
PR
|
Austrália
|
US$ 1,3
trilhão
|
19º
|
PR
|
Canadá
|
US$ 1,7
trilhão
|
24º
|
PR
|
Fontes: Fundo Monetário Internacional (2019), GlobalFirePower.com (2020). * Nações Unidas (2017)
OBS:
SP (Superpotência), PR (Potência Regional), EF (Estado Fantoche).
O que este
quadro nos sugere é que temos um xadrez internacional baseado no poder
financeiro do dólar norte-americano (pertinente para a relação EUA-China),
temos que o Euro é uma moeda importante (dentro do contexto da Zona do Euro e
como moeda de reserva alternativa para a Rússia) e temos uma cadeia produtiva
globalizada ligada ao conjunto dólar EUA-China e Euro-Países Emergentes. O que
isso nos indica é que temos quatro polos de poder se formando na atualidade: o
norte-americano, o chinês, o europeu e o russo. Destes quatro polos, dois são
superpotências. Uma consolidada (EUA) e uma em franca expansão (China). As
demais duas são grandes potências ou potências regionais que procuram encontrar
um caminho alternativo no meio dos dois gigantes EUA e China.
Os efeitos disso
para a política internacional são diversas. Mas iremos nos ater neste artigo
apenas ao efeito geopolítico e económico. As Forças Armadas são forças de
dissuasão antes de serem forças efetivas, por isso não iremos nos preocupar em
fazer comparações de poder bélico entre as superpotências, visto que não
chegamos ainda neste patamar. Estamos hoje num conflito de poder fundamentado
num entrave económico e potencializado pela crise do COVID-19. É este contexto
e estes efeitos que iremos analisar daqui para frente, visando compreender de
que maneira as potências (ou impérios) irão reagir a este imbróglio e como isso
afetará países como o Brasil.
PARTE 2
Efeito Pandemia
PONTO
DE SITUAÇÃO
Pré-Pandemia
Neste artigo
simplificado, não estou entrando nos pormenores da política interna de cada
país, não estou falando dos entraves históricos entre sociedades, também não
estou falando dos tratados internacionais e tampouco dos detalhes que envolvem
as relações entre os Estados-Nação. Como alertei no começo do artigo, a
intenção é informativa, opinativa e contemplativa. Usando dados gerais e um
pano de interpretação pessoal, busco integrar conhecimentos diversos no intuito
de dar ao leitor um panorama geral do ponto de situação geopolítico.
Neste sentido, é
importante salientar que não estamos levado em consideração questões
ideológicas e político-sociais em nossa análise. Embora poderíamos aventar a
hipótese de que governos de direita são alinhados automaticamente aos EUA e
governos de esquerda tendem a serem simpáticos a China, isso seria muito
simplista e incorreria em erros. Não iremos fazer julgamento de mérito de
partidos ou de facções políticas, uma vez que do ponto de vista do realismo na
teoria das relações internacionais, importa muito pouco o que os políticos
dizem, mas sim o que os Estados fazem.
O que vimos
anteriormente é um quadro geopolítico multipolar. Se ao final da Guerra Fria os
EUA ascendeu como única superpotência global, tendo a União Soviética
fracassado, vimos que ao longo dos 20 primeiros anos do século XXI a China
consolidou o seu poder, ao passo que os EUA se atrapalhou em guerras no Oriente
Médio (Afeganistão, Iraque), tensões com Coreia do Norte, tentativas
fracassadas de um acordo de não-proliferação de armas nucleares com o Irã e
adversários cada vez mais assertivos. A Rússia de Putin começou a adentrar
espaços que EUA e União Europeia não estavam, quer por falha ou por desatenção.
A China continuou o seu vertiginoso crescimento económico e foi pouco a pouco
vampirizando toda a economia ocidental com a sua economia de escala barata e
competitiva.
Claramente os
EUA perdeu influência neste mundo e hoje se vê numa posição amarga. Seus principais
ativos são o dólar e o grande poder de dissuasão derivado de sua Força Armada
global, presente em todos os continentes e pronta para agir em qualquer
circunstância. Isso garante que os EUA influencie aliados regionais
importantes, como Israel, Arábia Saudita, Coreia do Sul e Japão. Na América
Latina, vendo que China, União Europeia e Rússia ganhavam mais e mais espaço,
os norte-americanos optaram por uma política mais agressiva, onde grupos de
influência foram financiados por setores-chave dos EUA e o próprio governo
americano ativamente praticou espionagem de cariz industrial e político
(escândalo da NSA, denunciado por Edward Snowden).
A América
Latina, dependente do comércio com China e EUA (especialmente no caso do
Brasil) viu-se afetada diretamente pelo receio norte-americano de perder sua
esfera de influência nas Américas diante da China, como também viu o avanço
chinês sem precedentes. Aliado aos imbróglios internos das sociedades latinas,
tivemos nos últimos anos explosões de rupturas sociais sensíveis: Venezuela,
Argentina, Brasil, Chile, Bolívia. Todos afetados em algum grau pela
intensidade dos interesses geopolíticos norte-americanos e chineses.
Internamente, o
efeito do capitalismo financeiro e a perversão da escala produtiva global
financiada pelo dólar e aproveitada pela China levou milhares de milhões de
trabalhadores a perderem seus empregos nas nações ricas em detrimento da
alocação de fábricas em países emergentes (como China, Índia etc.). Este efeito
desagregador em massa dos empregos criou um grupo grande de cidadãos órfãos,
quer do ponto de vista financeiro ou quer do ponto de vista identitário. Foi
este vazio que, mais tarde explorado pelos populismos nos EUA e Reino Unido,
geraria a eleição de Trump e o Brexit. Mas é a geopolítica norte-americana
diante da economia de escala chinesa que tem levado tensão ao redor do mundo.
Na União
Europeia, o maior desafio é estrutural. Há uma moeda única, há uma zona de
livre comércio europeu, de livre-trânsito de pessoas, mas há uma máquina
burocrática extremamente ineficiente e morosa, que impede necessárias reformas,
como a fiscal, militar, de inteligência e política. A União Europeia não
consegue atuar como bloco geopolítico plenamente pois não possui uma autoridade
política amplamente reconhecida pelas demais potências. Seu ponto forte é a
economia, muito avançada tecnologicamente e com o suporte de uma moeda poderosa
globalmente. Do ponto de vista militar, a UE é dependente da OTAN (Aliança do
Tratado do Atlântico Norte), reminiscente da Guerra Fria e cujo principal
aliado e financiador é os EUA. Portanto, de certa forma, a União Europeia está
atrelada aos EUA geopoliticamente e tal simbiose torna bastante conflituosas as
tensões entre Europa e Rússia, assim como Europa e China.
A Rússia, por
seu lado, tem como objetivo manter sua integridade económica e territorial. A
política de Vladimir Putin é baseada em dois vetores: eficiência económica e
união identitária. Não por acaso ele se sustenta numa aliança com a Igreja
Ortodoxa Russa e uma tentativa de pacificar o passado czarista e o passado
soviético, sendo ele próprio um ex-agente do KGB. Para a Rússia, a União
Europeia é uma importante aliada económica, seja do ponto de vista monetário (o
Euro), ou do ponto de vista do mercado consumidor. Como já dito antes, grande
parte da exportação russa é destinada a Europa e os russos não podem jogar fora
os bilhões de euros que entram em seus cofres via balança comercial. O problema
de Putin e da Rússia é na verdade com a OTAN, que ameaça seus interesses
identitários.
A Anexação da Crimeia
e a Guerra em Donbass são dois exemplos da maior assertividade russa no cenário
europeu. Claramente há uma tendência de Putin reunificar em torno da Rússia
povos que já fizeram parte da União Soviética e que tenham algum tipo de
simpatia ou identitarismo russo. Seu arco de atuação tem sido o Leste Europeu,
o Oriente Médio (através do apoio a Assad na Síria) e participação na crise da
Venezuela, dando suporte militar e económico a Nicolas Maduro.
Finalmente a
China tem atuado por três vetores essenciais: a modernização da economia
chinesa, numa gradual tentativa de passar do modelo de exportação barata para
um modelo de alta tecnologia e consumo interno. O desafio para isso é que a
imensa maioria de chineses são pobres ou em situação de semiescravidão, não possuindo recursos para integrar um forte mercado interno. Por isso, a economia
chinesa ainda é muito dependente das exportações. Por ser dependente de
exportações, a China é também dependente dos mercados consumidores europeus e
americanos.
Já sendo a maior
parceira comercial dos EUA, a China tem como segundo vetor de atuação o
ambicioso projeto de reativar a antiga Rota da Seda, que liga a China ao
Oriente Médio até a Europa, formando um grande cinturão de comércio entre seu
país e os demais vizinhos na Eurásia. Na Ásia, a China projeta o seu poder
geopolítico especialmente pelo chamado “Mar da China Meridional”, sendo este o terceiro vetor. Este mar no
sul da China banha os países: Hong Kong, Macau, Taiwan, Filipinas, Malásia,
Brunei, Indonésia, Singapura, Tailândia, Camboja e Vietname. Diversos países e
os próprios EUA se refere a este Mar como águas internacionais, mas a China
reclama para si a soberania do mesmo. Sua intenção é ter influência sobre as
rotas marítimas da região e, com isso, ter controle sobre considerável parte do
comércio internacional.
Surge
o COVID-19
Na data em que
este artigo foi escrito, pouco se sabe ao certo a origem do novo coronavírus.
Há algumas versões, que incluem origem no Mercado Atacadista de Frutos do Mar
de Huanan, perto da província de Wuhan, onde os primeiros casos foram
registrados. Já o cientista e professor francês Luc Montagnier, prêmio Nobel de
Medicina e descobridor do vírus do HIV afirmou que teria sequenciado o RNA do
novo coronavírus e, depois de pesquisas, descobriu que ele se originou do
laboratório de virologia de Wuhan. O que indiciaria que o vírus foi
supostamente fabricado neste local.
O fato é que a
China registrou o primeiro caso em 31 de Dezembro de 2019, embora só tenha
colocado Wuhan em quarentena em 23 de Janeiro de 2020. Pouco a pouco novos
casos foram surgindo fora da China até que a OMS finalmente declararia que se
tratava de uma pandemia no dia 11 de Março de 2020. De lá até a data deste
artigo, mais de 2 milhões de pessoas foram infectadas, causando mais de 150 mil
mortes no mundo e com mais de 500 mil curadas. Sabe-se que uma vacina deverá
existir, em tons otimistas, dentro de 1 ano e meio. Trata-se de um vírus novo,
cuja população global ainda não tem imunidade e, por isso, é passível de ser
contaminada. O vírus é contagioso e passa de pessoa para pessoa, como numa
gripe comum.
Como se trata de
um vírus novo e a sociedade mundial não tem imunidade ao mesmo, é necessário
evitar que muitas pessoas se infectem ao mesmo tempo. Ainda que sejam poucos os
casos de gravidade clínica e complicações, se muitos pegarem, os casos graves
também tendem a aumentar, o que colocaria pressão sobre os sistemas de saúde em
todo o planeta. A única solução que se mostrou efetiva foi o distanciamento
social e a quarentena. Tal medida colocou pelo menos 40% da humanidade em
confinamento caseiro, com restrições de circulação e países inteiramente
fechados, quer para entrada ou saída. Pela primeira vez em muito tempo o mundo
está lidando com um planeta de fronteiras fechadas.
Isso significa
que cada país é responsável pela forma como lida com a pandemia. Embora a
cooperação internacional seja necessária (a ONU e a OMS conclamam por isso),
temos visto alguma solidariedade no nível Europeu (por causa da União Europeia)
e no nível global entre algumas potências. Mesmo assim, tal solidariedade vem
conjuntamente com um payoff
geopolítico extremamente caro: aquele que melhor lidar com a pandemia irá ter
automática autoridade diante das que não lidaram bem. Por isso a corrida hoje
em dia é por ver quem está melhor lidando com a crise e de quem é a culpa pela
mesma.
A pergunta é: quem irá prevalecer na pós-pandemia?
Neste exato
momento o que temos visto é um conjunto de guerra de informação e tentativa de
manipulação de dados de todas as partes. Não sabemos ao certo quantas pessoas
estão realmente infectadas, não sabemos quais dados são realmente transparentes
e realistas e não temos ideia de quem está realmente controlando a crise. Em
teoria, China, Alemanha e Rússia estão conseguindo controlar mais do que os
EUA, que a princípio está descontrolado. Mas isso é uma teoria, pois mesmo os
dados destes países pode estar enviesado. O que podemos assegurar com certeza é
que as medidas de lockdown e quarentena criaram um cenário de vigilância
estatal permanente que não deve cessar.
O que a pandemia
demonstrou é que todos os processos geopolíticos em andamento (os projetos de
poder dos EUA, Europa, Rússia e China), começaram a acelerar. Os EUA vive um
ano eleitoral e ao mesmo tempo é o pior país a lidar com a pandemia, tendo mais
de 600 mil casos e 40 mil mortos a data deste artigo. Morre-se mais em Nova
Iorque (atualmente com 13.869 mortes) do que em outros países inteiros. Fora isso, Trump tem agido num
duplipensar constante acerca do isolamento social. Ele permite que os
governadores façam aquilo que já fazem (ou seja, o isolamento), mas ao mesmo
tempo ameaça reabrir o comércio, fechar o Senado, culpa a China, chamando o
vírus de “chinese vírus” e culpabiliza também a própria OMS, acusando-a de conluio com a China.
A China, por sua
vez, continua com os mesmos dados de dois meses atrás, dando a entender que o
desenvolvimento da pandemia no país foi controlado plenamente. Eles não
demoraram em propagar seu sucesso e logo se ofereceram como referência para
ajudar outros países. O problema é que não se tem transparência sobre os dados
chineses, especialmente depois que tantos jornalistas, médicos e denunciantes
desapareceram no início da crise ao tentar alertar o mundo sobre a pandemia no
país. O gráfico que indica a comparação entre casos do novo coronavírus entre
EUA e China é bastante estranho:
Na União
Europeia, os principais países são os que mais tem sofrido com a pandemia.
França, Itália, Espanha e Alemanha possuem os maiores índices de casos.
Contudo, é também a Alemanha que parece ter controlado o desenvolvimento de
novas infecções e tem colocado em andamento diversos planos para a saída
gradual do confinamento. A União Europeia também tem corrido contra o tempo
para demonstrar maior solidariedade a nível europeu, em contraposição as rusgas
geradas pela crise financeira de 2008. Uma das formas de se criar uma resposta
coletiva do bloco europeu é um conjunto de medidas imediatas e futuras que
visem resguardar a economia europeia e dividir as responsabilidades. Esta
divisão de responsabilidades financeiras fez com que os ministros da economia da
Holanda e Alemanha rejeitassem a ideia amplamente difundida dos “coronabonds”, ou seja, a mutualização de
dívida pública entre todos os membros da União Europeia. Como tradicionalmente
os países do norte tendem a ser mais austeros fiscalmente do que os do sul,
estes ministros acusaram Espanha, Portugal e Itália de não terem fama de bons
pagadores e que, por isso, a ideia de uma mutualização da dívida não ser tão
interessante. Estes comentários levaram o Primeiro-ministro português a
responder energeticamente e enfaticamente contra tais declarações, no que
recebeu apoio de outros países, inclusive da França.
Tais rusgas
parecem terem sido superadas, depois que o Parlamento europeu aprovou um plano
de ajuda financeira no valor de 1 trilhão de euros, assim como está em
andamento estudos para um “Novo Plano Marshall”, que visa a reconstrução da
economia europeia como um todo na pós-pandemia. A verdade é que nenhum país
europeu é capaz de passar pela pandemia e pela crise económica subsequente
sozinha, de modo que apesar das rusgas internas, o conceito de uma União
Europeia é cada vez mais valorizado por entre os governos e até mesmo entre os
eurocéticos, que conclamam uma política de saúde pública para todo o bloco.
Isso dá a entender que o futuro da União Europeia é de maior interconexão e
aproximação, apesar dos já citados desafios estruturais e burocráticos.
Quanto a Rússia,
novamente os dados são muito obscuros. Atualmente a Rússia tem registrado 42
mil casos, tendo 361 mortes e 3.291 curados. Sendo verdade, estes dados
demostram que o país está conseguindo controlar a pandemia também. Porém,
voltamos ao mesmo caso da China: não temos transparência suficiente para ter a
certeza de que estes dados coadunam com a realidade. Mas como narrativa, poderá
servir aos interesses de Putin em demonstrar que o país é competente o
suficiente para controlar a pandemia e que os russos são mais capazes, por
exemplo, do que os EUA e a Europa no combate ao COVID-19.
Todo este
cenário nos indica o seguinte:
1º. A União Europeia
está em sua própria bolha, lidando com a crise ao seu modo e tentando criar uma
rede solidária entre os países do bloco e também a nível internacional. Apesar
das rusgas internas, são as rusgas externas as mais dramáticas. A China foi
acusada de enviar a Espanha milhares de testes que não funcionam. A França
comprou da China milhares de máscaras que, no aeroporto, foram transviados para
os EUA ao invés de seu destinatário original, a França. Os países da União
Europeia também estão criando uma malha de proteção económica contra o capital
chinês, que visa comprar empresas em crise por causa do coronavírus.
2º. A Rússia
está em sua própria bolha também, tentando controlar a pandemia. O efeito
imediato foi a paralisação das mudanças constitucionais que Putin estava
empreendendo no país no intuito de permanecer no poder até 2036. O efeito de
médio prazo disso ainda não está claro, mas a tendência é a Rússia primeiro
tentar controlar o surto para, então, acelerar as mudanças políticas internas
que assegurem o poder de Vladimir Putin.
3º. A China
claramente está mais agressiva em sua política externa. Como dito
anteriormente, os chineses sabem que dependem do comércio internacional para manter
a sua economia de escala. Como este está em declínio por causa da quarentena
global, o país asiático tem usado outras estratégias. Considerando que muitas
economias entrarão em depressão, o capital chinês tenta a todo custo garantir o
acesso aos recursos de países pobres e emergentes, especialmente na África e
América Latina. Isso já criou rusgas também entre China e Europa, que para
assegurar sua influência diante das ex-colónias africanas começou a perdoar
dívidas e assegurar financiamento em euros aos países afetados. O jogo
geopolítico da China também se apresenta na Ásia, onde ela tenta projetar o seu
poder com maior efervescência diante de Coreia do Sul, Índia e Japão. O Japão,
por exemplo, assim como a Europa, criou um fundo para repatriar empresas
japonesas que atuavam na China e tem buscado evitar que o capital chinês entre
no país. Neste momento é certo afirmar que a China quer promover o discurso de
país responsável, eficiente e cooperativo durante a crise, buscando utilizar
seu aporte financeiro para inserir-se mais fecundamente nas economias ao redor
do planeta.
4º. Já os EUA
tende a entrar numa recessão mais profunda do que a de 1929. Com a economia
chinesa em queda e o mercado interno norte-americano paralisado, é possível que
veremos uma corrida financeira para assegurar financiamento pós-pandemia. Desde
o começo da crise sanitária global e do pânico dos mercados, o governo americano
aprovou uma injeção de 2 trilhões de dólares num pacote de ajuda económica,
fora o 1 trilhão que já foi injetado nos pregões. O desafio dos EUA é manter o
nível de consumo elevado, uma vez que grande parte do PIB norte-americano é
dependente de bens e serviços. Com a China em franca paralisação, a produção
norte-americana também sofre um refreio. Para 2020, é possível que vejamos uma
diminuição drástica na produção de riqueza e um número de falências bastante
elevado.
O que estas
informações sugerem, portanto, é que todo o planeta está numa situação mais ou
menos similar. Isso significa que os efeitos da crise económica nos países será
uníssono, de modo que se todos estão em maus lençóis, ninguém estará melhor do
que ninguém de fato. É como uma competição para ver quem fica menos mal, não
para ver quem fica bem. Neste caso, o menos mal é aquele que conseguir garantir
recursos para uma alavancagem pós-pandemia, no que demanda uma manobra
financeira robusta. Os únicos países que estão mais ou menos ensaiando esta
alavancagem são EUA, China e União Europeia (se considerarmos como se fosse um
país). O problema é que ao mesmo tempo em que todos planejam uma retomada,
todos estão competindo para ver quem terá a melhor condição de alavancagem.
E aqui entra o
jogo geopolítico. A China quer sair da pandemia como a grande financiadora
global das economias quebradas, monopolizando assim os recursos financeiros
destes países e fortalecendo a sua posição internacional, tanto do ponto de
vista económico quanto político. Porém, e sabendo que este é o projeto chinês,
Europa e demais países estão refreando o avanço do capital chinês, criando eles
próprios planos de financiamento para suas empresas em crise. Os EUA já estava em guerra comercial
com a China, de modo que o capital chinês já tinha e continuará a ter maior
dificuldade de entrar no país de Donald Trump. Portanto, podemos afirmar que a
tendência é a de um mundo mais radicalmente competitivo (e portanto menos solidário).
Cada potência tentará ao seu próprio modo garantir a sobrevida económica
pós-pandemia. Logo, é cada um no seu quadrado e uma rejeição enfática do
comércio internacional como meio de funcionamento do capitalismo.
A lição que
tiramos disso é que o efeito tangível da pandemia na geopolítica é na mudança
drástica do capitalismo financeiro, de escala globalizante para financismo de
blocos. Ou seja, cada bloco financeiro tentará sobreviver por conta própria,
sem receber “ajuda” financeira dos demais blocos, visto que esta ajuda
financeira poderia se tornar num grande elefante branco de domínio geopolítico
mais à frente na alavancagem. EUA, União Europeia e China estão jogando seus
jogos independentes uns dos outros. Portanto, há uma tendência ao isolacionismo
momentâneo de alguns blocos, como também a uma diminuição imensa na escala da
economia global. A globalização entrou, de fato, numa nova fase. Menos
consumista, menos acelerada, e muito mais monetária. Se antes vivíamos o
capitalismo financeiro, hoje vivemos uma guerra monetária.
Os efeitos disso
no longo prazo ainda são incertos, mas as tendências são claras. A
multipolarização se acelerou e os países fantoche ou regionais precisarão se
adaptar a isso com rapidez. Dificilmente o real brasileiro, para usar o exemplo
do Brasil como país-satélite dos EUA e potência regional, conseguirá se
recuperar plenamente após esta pandemia. A indexação do real ao dólar
norte-americano deve se aprofundar, com um domínio mais profundo dos EUA sobre
o Brasil, o que pode gerar um efeito sinofóbico
“fobia da China”, especialmente materializado pela maior aproximação do governo
Bolsonaro aos interesses norte-americanos. Do ponto de vista brasileiro isso
seria um desastre económico colossal, visto que a China é o maior parceiro
comercial do país e um dos principais importadores dos produtos nacionais. Se a
economia brasileira for transferida para os interesses norte-americanos,
podemos esperar um encolhimento mais dramático do poder de compra do real,
maior desemprego, menos riqueza e outras dificuldades que não cabem neste
texto.
Conclusão:
I.
O mundo deixou de estar no
capitalismo financeiro globalizado para entrar na guerra monetária de blocos;
II.
Veremos um retorno do protecionismo
e das taxas de importação, numa clara tendência de concentração de capital nos
blocos: EUA, União Europeia e China;
III.
Não se trata de quem produz, mas de
quem financia quem produz. É uma nova etapa do capitalismo financeiro: uma
guerra monetária visando o controle dos recursos de financiamento;
IV.
Isso levará os blocos a intervirem
economicamente e financeiramente nos mercados de todo o planeta. Como numa
guerra, aonde um puder entrar, ele fará de tudo para entrar.
V.
Esta intensa disputa financeira
criará rusgas indissolúveis entre os blocos, gerando certo isolacionismo e
também modificando as estratégias e abordagens geopolíticas de cada bloco.
VI.
A depender dos resultados, as
economias mais frágeis são a norte-americana e a chinesa.
O fato da China
não ter um mercado interno forte o suficiente para substituir a demanda
internacional que financiava sua economia de exportação é indício de que
dificilmente ela conseguirá se recuperar da queda brusca de seu PIB. A recessão
na China em 2020 pode ser uma das maiores da história, e para sobreviver a única
coisa que os chineses podem fazer é comprar os recursos produtivos
internacionais para ter “bala na agulha” durante a alavancagem da economia
internacional. O problema é que, se os demais blocos estão se preparando para
se proteger desta ofensiva financeira chinesa, então a China não terá sucesso
em sua tentativa de refrear a recessão e depressão, fazendo com que o país
entre em uma profunda crise económica e potencialmente social e política.
Embora a China
tenha a maior parte de manufatura do planeta (no valor de 4 trilhões de
dólares), estas manufaturas não são de alta tecnologia (ver quadro cima), mas de maquinário
elétrico, roupas, partes de automóveis, mobília, iluminação, bolsas, carteiras
e afins. Produtos muitas vezes baratos, pois o custo de produção na China é
muito barato, e de baixa qualidade, visando a exportação em larga escala. A
China é o terceiro maior exportador do mundo, junto de EUA e União Europeia. Competindo
pelo mercado global junto a estes outros dois blocos, é notório que num cenário
de guerra monetária, aumento nas taxas de importação e diminuição da economia
de escala, a China comece a entrar num franco declínio de seu modelo. Como ela
responderá a este declínio, ainda é uma incógnita. Mas o certo é que veremos
uma intensa disputa entre China, EUA e União Europeia nos próximos tempos e um
ambiente geopolítico muito mais hostil.
Quanto aos Estados Unidos, é importante salientar que a dívida pública norte-americana está em seu mais alto patamar histórico (no valor de 22 trilhões de dólares), além de ter uma moeda cujo retorno financeiro depende da saúde fiscal do planeta. Estando a China em declínio e a UE fechada em si mesma, além do resto do mundo em recessão, os EUA terá muita dificuldade de gerar sua retomada, o que pode criar empecilhos geopolíticos ainda inconclusivos.
Mais análises e atualizações, a qualquer momento.
Obigado pela leitura,
Boa noite, e boa sorte
Quanto aos Estados Unidos, é importante salientar que a dívida pública norte-americana está em seu mais alto patamar histórico (no valor de 22 trilhões de dólares), além de ter uma moeda cujo retorno financeiro depende da saúde fiscal do planeta. Estando a China em declínio e a UE fechada em si mesma, além do resto do mundo em recessão, os EUA terá muita dificuldade de gerar sua retomada, o que pode criar empecilhos geopolíticos ainda inconclusivos.
Mais análises e atualizações, a qualquer momento.
Obigado pela leitura,
Boa noite, e boa sorte
Fontes:
[2] O que é geopolítica? - J.W.Vesentini
[3] World Economic Outlook Database, October 2019
[5] The Central Bank of the Russian Federation, 2019
Sasha Rupar Lamounier van Lammeren
Jornalista e Analista
Porto, Portugal
20 de Abril de 2020