Em 2022, o Brasil comemora os seus 200 anos de independência. Em dois séculos como nação soberana, saímos de um Império constitucional para uma República errática e golpeada ao longo de seu pouco mais de 130 anos de existência. Nascida, ela própria, de um golpe de Estado em 1889, quando uma quartelada derrubou o governo de D. Pedro II, a República hoje inaugura uma nova versão de si mesma. Num país que, ao longo do século XX, se vendeu para o mundo como um lugar alegre, progressista e otimista, inauguramos hoje a sua versão definitiva: o novo ‘velho’.
O ocaso da sociedade brasileira neste 2022 se
encontra na clivagem entre dois Brasis diferentes. Um, representado pelo candidato
da centro-esquerda Lula da Silva, e o outro representado pelo atual militarista
presidente da República, Jair Bolsonaro. Duas candidaturas que, para além dos
temas em destaque no processo eleitoral deste ano, acabam por encarnar em si
mesmos duas visões de sociedade e de mundo bastante distintas. Do lado progressista,
temos a ideia de um Brasil otimista, livre e aberto para as diferenças
culturais e sociais. Um país incluído no circuito das democracias ocidentais
sem medo de ter, no entanto, a sua própria voz.
Do lado militarista, temos um Brasil
fundamentalista, hipócrita, violento e bastante conspiracionista. A ideia de
sociedade aberta não é, aqui, bem-vinda. Trata-se de um Brasil fechado na sua
própria bolha pueril, até mesmo provinciana, dominada pelo agronegócio e pelo
sistema financeiro. Uma sociedade que em muito se assemelha a mesma sociedade
escravocrata e elitista de finais do século XIX. Portanto, diria eu com certo
enfadonho: estamos mesmo diante de algo novo?
O Brasil que morreu em 2022 não é o mesmo Brasil que
sempre existiu, mas a ideia de que criaram 100 anos atrás na Semana de Arte Moderna
de 1922. A (possível) reeleição de Jair Bolsonaro (ou o seu golpe) vem para
representar o fim desta visão de país progressista tornada popular pelos
quadros de Tarsília do Amaral, pelos escritos de Oswald de Andrade, pela música
de Heitor Villa-Lobos e também pela inquietante mente de Rui Barbosa. Este
Brasil, profundamente democrático e inclusivo, onde o povo era incluído como
parte do processo político e não mais como observador passivo, este mito
brasileiro de ‘país do futuro’, onde tudo seria possível nos trópicos, agoniza.
O que fica em seu lugar é a visão anterior a Semana
de 1922. É a ideia de um Brasil exclusivo, onde a Casa Grande e a Senzala se
distanciam cada vez mais, tornando o ambiente violento numa afronta ao próprio progresso
humano. Um país que se tornou um moedor de gente, onde talentos são ceifados,
onde as luzes do conhecimento são podados pelo obscurantismo da ignorância. A
religião, outrora parte de uma espiritualidade espontânea, agora volta a ser
instrumento meramente político. É parte integral, não apenas vacilante, da
engrenagem deste novo Brasil moribundo. E diante deste quadro dantesco para
qualquer democrata e progressista que se preze, nos perguntamos: o que será do
Brasil daqui para frente? O que o povo pode fazer diante deste cenário? Quem
somos nós, enquanto nação?
Comecemos pelo fim
Já discuti em outros escritos que nenhuma nação é
apenas uma coisa só. Um Estado-Nação é um conjunto de intersecções sociais e
culturais que se organizam debaixo de uma estrutura burocrática, a qual
denominamos de Estado. Este Estado, estruturado em poderes (executivo,
legislativo e judiciário), organiza a vida prática da sociedade e a impulsiona
para o mundo, na sua relação consular diante dos demais povos. Neste sentido,
temos de compreender que o Brasil não é apenas o Brasil de Bolsonaro, como
também não é apenas o Brasil de Lula (embora ambos representem 80% da população
brasileira em conflito, não apenas dois candidatos ou partidos em conflito).
O Brasil é toda a sua gente que participa e não
participa do processo eleitoral. O povo brasileiro são os votos bolsonaristas,
os votos lulistas, os votos brancos ou nulos, são também as abstenções e são
também os votos nos demais candidatos. Todos são Brasil. Portanto, é uma tarefa
um pouco mais complexa compreender como este tecido social está estruturado e
como ele pode, ou não, arrebentar.
Um Estado para existir precisa de pelo menos duas
coisas: compromisso social com a sua manutenção e um acordo para que as
diferenças sejam organizadas dentro das regras do jogo deste Estado. Hoje, o
Estado brasileiro é instituído como um ‘Estado Democrático e de Direito’, o que
significa que trata-se e um Estado baseado numa carta de compromissos (a
constituição da República) e num acordo entre divergentes que aceitam as regras
deste compromisso para negociar as suas diferenças. A democracia é, em
essência, não o ambiente onde as maiorias governam e as minorias fazem
oposição. A democracia é o espaço aonde as contradições sociais encontram
elementos de mediação constante. Também por isso as maiorias e minorias mudam
de eleição em eleição. Se a democracia fosse o ‘império da maioria’, não
haveria compromisso algum.
Desta feita, urge compreender que o Brasil de
Bolsonaro e o de Lula são antagónicos em essência. E embora um possa ser numericamente
maior do que o outro, ambos precisam encontrar elementos no Estado Democrático
de Direito para conviver, não importando quem quer que seja eleito. Se a nação
está rachada ideologicamente, e se o Estado não é capaz de sustentar o ambiente
na qual tais contradições são negociadas, então o único caminho que sobra é a da
distensão social e a disrupção de um inevitável conflito. Neste fatídico
resultado, o que devemos nos perguntar é: quais forças teriam interesse em
pacificar este conflito? De que maneira o Estado poderá sobreviver a este
conflito?
Começando do fim, a resposta a esta pergunta é muito
simples. O Brasil não possui mais compromisso social, de modo que a ideia
uníssona de nacionalidade, de um pacto social independente de ideologias, não
faz parte da agenda política, ou económica e sequer cultural do país. Se não
temos mais compromisso, também não temos mais acordo. E neste sentido, o Estado
Democrático já é um efémero fantasma de si mesmo, desprovido de sustentação e
de força para a manutenção da paz social e do progresso do devir natural que
acomete os povos em processo de progresso constante.
Quando me refiro a conflito, é o conflito de gentes,
a guerra mesma, na sua essência. Ao antagonizar constantemente os adversários,
tanto Bolsonaro quanto Lula acabam sendo os interlocutores que elevam a pressão
social ao nível da ruptura. É muito claro que, diante deste cenário, e não
havendo união por parte das elites económicas, intelectuais e culturais do país
pela Democracia, ta conflito levará a uma decisão absoluta. Tal decisão, que
acabará no colo dos militares e das PMs dos estados, definirá de que lado o
pêndulo do destino brasileiro rumará.
As Forças Armadas não darão, em 2022, um golpe ‘clássico’.
Elas não precisam, ainda mais com os privilégios que já tem, dar-se ao trabalho
de romper o sistema de forma violenta. A violência política já está instalada e
o comando militar já está no governo. Tudo o que eles precisam, agora, é de um
evento-chave na qual a estrutura mesma do processo democrático seja abalado de
tal forma que a tutela das Forças se torne inevitável. Nenhum regime militar se
sustenta se os ditadores forem vistos como ditadores. Daí que o ‘ar’ de
legalidade é importante, até mesmo para atrasar a resposta internacional a
ruptura democrática.
O que estamos assistindo em 2022 é um processo lento
e gradual de deslegitimação do Estado Democrático para fornecer subsídios
visando a implementação de um Estado Militar. Estado este sustentado não por
Bolsonaro, mas pelas forças populares que votam em Bolsonaro e que se
posicionam em contrário a visão de Brasil progressista e democrática. O Brasil
conservador, fundamentalista, exclusivista, patrimonialista e paternalista. O
Brasil hipócrita, falso patriota e não muito diferente do que era na República
Velha. Não será um regime que irá acabar com as eleições, mas sim um regime que
irá controlar as eleições de tal modo que será muito difícil um resultado
diferente ao desejado pelo Alto Comando encontre qualquer tipo de sucesso.
O ‘fim’ do Brasil progressista representa o fim do
Brasil livre. Pois o livre pensamento, a livre manifestação de ideias, a
própria arte e a criatividade económica ficam podadas diante de uma estrutura
fechada, elitista, arcaica e antagónica a divergência. Muitos pensam que uma
ditadura precisa de ter um ditador invocando atos institucionais. Decerto, essa
foi a experiência brasileira dos anos 1970-80. Mas em 2022, tais ‘atos
institucionais’ serão votados no Congresso comprado e fisiológico, dando assim
um senso de ‘normalidade democrática’ para os atos fora das quatro linhas
constitucionais. O povo, empobrecido, mas controlado pelas hordas
fundamentalistas e pelo desporto, não conseguirão compreender que o regime está
instalado e que a liberdade não existe. E é esta ignorância que, infelizmente,
tornará praticamente irreversível a situação.
A pior ditadura não é aquela onde o abuso é evidente
e claro. A pior ditadura é aquela que possui aparência de democracia. Temo que
o Brasil caminhe para este trágico fim. E digo ‘fim’, pois não teremos
capacidade social ou cultural de reinventar um novo Brasil depois disso. Não
temos mais os mecanismos de livre debate, ou de educação popular, capazes de reverter
o processo de destruição da nacionalidade brasileira. A ‘nova’ nacionalidade, é
bastante velha. É a nacionalidade das elites podres que preferem controlar um
país pobre do que prosperar num país rico para todos. Precisaríamos de uma revolução
popular para reverter este quadro. E, infelizmente, temo que o povo brasileiro
seja passivo demais para enveredar pelo caminho revolucionário.
O que nos resta
O leitor(a) poderia então me perguntar: o que fazer
diante deste cenário? Parece que se ficar o bicho come e se correr o bicho
pega! Pois eu diria, caro leitor(a), que a oportunidade para agir pacificamente
já passou. Ou vamos para o conflito em defesa das teses democráticas da Semana
de Arte Moderna de 1922, em defesa da Constituição de 1989, em defesa do Brasil
do futuro que tanto vislumbramos em nossos corações, ou de fato iremos perde-la
para sempre. O chamado para a luta é agora e não temos volta a dar. Se a sua
escolha for não lutar por estes ideais, então estarás aderindo ao Brasil
obscuro e arcaico que sempre existiu e que fingíamos que era passado.
Tal decisão não se resume a esta eleição. É uma luta
constante, que inclui o pleito de 2022 e vai além dele. Se o Lula ganhar,
teremos de garantir uma transição de poder. Se ele tomar posse, teremos de garantir
que ele governe. E se ele governar, temos de garantir que ele não seja morto. O
mesmo seria verdade se o Ciro fosse o vitorioso, se a Tebet fosse a vitoriosa,
ou quem quer que seja que não fosse Jair Bolsonaro. Um país é um constante
fazer, um constante processo. Aqueles que estejam dispostos a lutar por uma
visão diferente de sociedade precisam, mais do que nunca, de se unir. Pois será
a união desta visão diferente de Brasil que poderá fazer emergir uma esperança.
Se não houver esta união por um projeto diferente de
Brasil, se não houver a adesão dos setores da elite económica, cultural,
intelectual e mesmo militar pelo Brasil Democrático, de nada adiantará gastar
nosso latim numa causa perdida. Não gosto de falar em termos absolutos, até
porque a vida não é nada absoluta, mas bastante dinâmica. No entanto, o
dinamismo da sociedade brasileira encontra neste 2022 o seu momento crítico. O não-agir
significará a morte. O Brasil agoniza. Neste agonizar, não temos outra saída se
não a permanente luta. Uma luta que se baseia em ideais, valores e princípios
muito maiores do que a transitória eleição baseada nos interesses comuns e
mundanos.
Durante a Guerra do Paraguai, em 1868, teria dito
Duque de Caxias (o patrono do Exército brasileiro): “Sigam-me os que forem
brasileiros!”. Pois este chamado ressoa novamente agora. Lutem pela democracia os
que forem brasileiros! Pois se não lutarem, terão desistindo não apenas da
democracia, mas também do próprio Brasil.
Obrigado pela leitura,
Porto, Portugal
24 de Julho de 2022
Sasha R. L. van Lammeren