03/02/2015

A Resposta Liberal, por Rui Albuquerque


Liberalismo Clássico versus Anarco-Capitalismo

A Resposta Liberal: por Rui Albuquerque


O texto a seguir foi escrito por Rui Albuquerque no grupo Liberalismo Clássico, em resposta ao artigo de Jesús Huerta de Soto, cujo título é "Liberalismo Clássico versus Anarco-Capitalismo", e cuja essência é uma crítica ao liberalismo, citando o anarco-capitalismo como "único meio possível". Eis a resposta liberal a esta crítica:


São inúmeros os problemas da argumentação de Huerta de Soto sobre o liberalismo clássico, sendo de lamentar que para afirmar uma das correntes contemporâneas da Escola Austríaca, porventura, actualmente a mais mediática, se tenha de pôr em causa o liberalismo clássico oitocentista, provavelmente o único momento histórico em que as ideias liberais foram predominantes e muito bem sucedidas no mundo ocidental. Eis alguns desses equívocos.


Em primeiro lugar, a falta de enquadramento histórico. Na verdade, quando se diz que o principal erro do liberalismo clássico está em acreditar na possibilidade de conter o poder do estado, ignora-se o que foi a segunda metade de século XVIII e todo o século XIX. Nesse período de tempo, quer na maior parte dos países europeus, quer em boa parte do continente americano, viveu-se um período de liberdade dificilmente igualável na história. Vindos de regimes absolutistas, onde a liberdade e os direitos individuais existiam na exacta medida em que o poder soberano os consentia, isto é, eram verdadeiro poder discricionário do soberano, esses países ganharam, graças às transformações operadas pelos movimentos liberais, regras claras de limitação da soberania (como lembra Hayek, «Constituição» era sinónimo, por esta altura, de «poder limitado»), que efectivamente contiveram a soberania em parâmetros razoáveis por mais de um século. O facto do constitucionalismo liberal oitocentista ter sido, em boa medida, pervertido a partir sobretudo de Weimar, não invalida, nem diminui a importância desse ciclo de liberdade, paz e prosperidade que foi vivido em quase toda o Europa, e que permitiu que a maior parte dos seus países criasse as estruturas de desenvolvimento que ainda hoje fazem deles dos países mais desenvolvidos do mundo. Esta é, provavelmente, a melhor evidência histórica de que as ideias liberais podem ser uteis às pessoas e às sociedades. Serem os liberais a pô-la em causa é um inqualificável absurdo.


Por outro lado, apesar da Constituição já não ser – longe disso – invulnerável à progressão do poder do estado e aos seus abusos (sobretudo os cometidos contra a propriedade), ela continua a ser largamente eficaz na garantia dos direitos fundamentais, tais como o direito à vida, à liberdade de expressão, genericamente, os chamados «direitos fundamentais de primeira geração», aqueles com os quais os liberais mais se identificam, segundo a tradição lockeana. Se considerarmos a importância destes direitos para viabilizarem aquele outro que é a pedra de toque de todo o pensamento liberal – o direito de propriedade -, e se verificarmos como eles eram miseravelmente espezinhados no passado ainda recente e em outras latitudes do nosso tempo, entenderemos muito melhor a importância e o valor de uma tradição que, em vez de atacar, devíamos reivindicar.


Por outro lado, por pior que seja o constitucionalismo contemporâneo, está ainda por inventar um sistema prático e real que efectivamente consiga maior eficácia na contenção do poder do estado. Se alguém o conhecer, agradece-se que nos diga onde o poderemos encontrar. Definitivamente, o constitucionalismo liberal não é uma mera peça arcaica da museologia liberal. Ele foi a única experiência prática com resultados concretos que melhoraram a vida de milhões de pessoas, e poderá ser, de novo, ponto de partida para mais liberdade no nosso tempo.


Também se anda demasiadamente à volta da questão da «desnecessidade do estado», tema que pode ser de grande interesse filosófico e especulativo, mas que pouca utilidade tem em sociedades, como as nossas actuais, onde o estado tem uma presença cada vez mais asfixiante na vida das pessoas. É evidente que a eficácia do estado é sempre mais reduzida do que a da livre-empresa e do mercado, e isso é fácil de demonstrar, mas o facto é que ele existe. Ponto. E como existe e sempre existiu, não pode ser desconsiderado como se fosse fácil descartá-lo. Em sociedades humanas onde as pessoas têm tempos de vida muito curtos, parece-me mais interessante, útil e rentável para todos, preocuparmo-nos em encontrar formas de reduzir um problema que nos aflige e que é cada vez maior, do que optar por dizer que este problema não nos interessa, logo, devemos pensar para além dele. De facto, quando, por exemplo, num país como Portugal, onde só o imposto de renda pode facilmente ultrapassar mais de 50% de um salário bruto de classe média (depois acrescentem-lhe a segurança social, aplicada directamente sobre o rendimento, e um sem número de impostos e de taxas aplicáveis ao consumo), parece-me muito mais pertinente tratar de encontrar meios de permitir que as pessoas fiquem com aquilo que é seu, do que andarmos a discutir se a sociedade ideal deve ou não reservar um lugar para o estado. Trata-se de uma verdadeira inutilidade para todos nós, e eu, tal como Mises, sou, em política, um utilitarista: só vale a pena discutir aquilo que nos possa servir para alguma coisa. Neste caso, quem for liberal deverá preocupar-se com a enorme dimensão que os estados ocidentais atingiram nas últimas décadas, e esforçar-se para que esta tendência se inverta. Se no fim desse processo o estado tiver desaparecido ou ainda sobreviver é assunto com o qual, muito francamente, não me preocupo e que acredito não se colocará nem na minha vida, nem na das gerações seguintes. Nem me preocupo eu, nem ninguém que tenha contas para pagar no fim do mês, e as pague com o dinheiro do seu trabalho.

Sobre a questão teórica e última da necessidade do estado, entendo não existir uma verdadeira dissensão entre liberais clássicos e ancaps, porquanto os primeiros, ao invés do que afirmam os segundos, não são minarquistas por acreditarem na superioridade do estado para desempenharem algumas funções da vida em sociedade, tais como a segurança e defesa, a justiça, etc., mas por evidente constatação, isto é, porque verificam que o estado existe e existiu em todos os momentos da história da humanidade, enquanto relação de poder, de «comando e obediência» (vd. Julien Freund), qualquer que tenha sido a sua forma. Ora, conhecer o inimigo é condição sem a qual ninguém poderá aspirar à vitória em qualquer contenda. Nada, portanto, como um pouco de realismo político (maquiavélico ou conservador, se preferirem), para compor um pensamento verdadeiramente liberal.

Por outro lado, se o estado não existisse, todo o liberalismo, fosse qual fosse a sua forma, seria desnecessário. Deste modo, como digo há muito, o liberalismo não é uma filosofia do estado e do governo, mas sobre o governo e o estado. Dito de outro modo, não ensina ninguém a governar, tão-pouco enuncia uma teoria do «bom governo», mas ajuda a compreender por que é que o governo e o estado são naturalmente perversos e limitadores da nossa liberdade. E explica também, na abordagem económica estrita, por que é que a gestão pública é sempre menos eficiente do que a privada, e por que é que com esta conseguiremos sempre melhores resultados e satisfazer mais eficazmente os consumidores.

Por último, irrita-me o discurso «revolucionário» dentro do pensamento liberal. Verdadeiramente, ele irrita-me seja onde for, mas dentro de portas incomoda-me mais. Isto vem muito de HHH, e Huerta de Soto, agora, juntou mais um inesperado «H» à trilogia anterior. Na verdade, as convicções revolucionárias são profundamente antagónicas ao livre-mercado e à ordem espontânea, onde se acredita que a ordem social nasce naturalmente da livre intercessão dos indivíduos. Ora, todo o espírito revolucionário é dogmático e orientador, isto é, socialmente construtivista. Socialista, eu diria. Acresce, por outro lado, que as sociedades em que vivemos são – felizmente! – plurais, pelo que aquilo que nos agrada não será certamente partilhado por todos. Ora, as sociedades liberais distinguem-se exactamente das demais, porque permitem a livre convivência de pessoas que pensam de formas completamente divergentes, bem como lhes permitem que, apesar das suas diferenças, elas possam agir em liberdade para determinarem as suas existências. O modo como isso é feito é precisamente através do Estado de direito, que limita a acção do governo e impõe o respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos. Criar um modelo de vida igual para todos, seria reduzir a pluralidade à igualdade. Uma forma de totalitarismo socialista, eu diria.

Em suma, Huerta de Soto limita-se a entrar, de forma acrítica, na moda mais recente. Admito que a irritação que o estado contemporâneo nos provoca leve a que seja difícil resistir aos novos ímpetos «revolucionários». Por isso acredito que, no nosso tempo, só um liberal que seja simultaneamente conservador poderá evitar essas tentações. Não foi o caso dele, como se constata.


Porto - Portugal
03 de Fevereiro de 2015

_________________________________________________________________________________


REFERÊNCIAS:


Nenhum comentário:

Postar um comentário